Era uma vez duas galinhas; ambas estavam encubando uma ninhada de ovos. Uma era empírica-analítica, a outra intuitivametafísica.
– Acho que sim – respondeu a
outra.
– Você é muito crédula – volveu a
primeira.
– Há três dias e três noites que
estou escutando e não percebo nenhum ruído, nenhum movimento no interior dessas
cascas brancas.
– Hum! – fez Intuição, dando ligeiro
muxoxo com o bico.
– Pelos modos, você pensa que
vida é ruído e movimento...
– Penso muito; você tem razão; e
você parece pensar pouco.
– Que é que você pensa? - Se vida
não é ruído e movimento, então não é nada mesmo. Acho que estamos perdendo o
nosso tempo e as nossas forças, chocando cascas mortas, cheias de nada e de
vácuo. Penso muito, muito, muito...
– Cheios de nada e de vácuo? Que
palavras estapafúrdias são essas?...
– São termos da minha filosofia
empírica intelectual...
Houve momento de silêncio entre as duas galináceas. Quase que não se ouvia, no meio desse silêncio, a força do pensamento de Análise e a grande paciência de Intuição. Finalmente, dando outro suspiro prolongado e meio pessimista, disse Análise:
– Estou emagrecendo...Também não
é pra menos... Há três dias e três noites que estou com 39 graus de febre...
que coisa estúpida é essa incubação...
– Essa febre é necessária.
– observou Intuição.
– Necessária para quê?
– Para despertar a vida dormente
nos ovos.
– Vida dormente? Vida
dormente?...
– e a incrédula deu uma gargalhada
de escárnio.
– Como se houvesse tal coisa.
Vida que dorme não é vida... Não, não aguento mais. Eu sou uma galinha
intelectual, científica, galinha que pensa. Não nenhuma galinha-morta que creia
em vida dormente, vida sem vida. Sou uma pensadora empírica...Penso muito,
muito, muito...Metafísica não é comigo...
Isto dizendo, a galinha analítica
quebrou um dos seus ovos com a ponta do bico e derramou o conteúdo pelas palhas
do ninho.
– Está vendo? Está vendo?
– exclamou triunfante.
– Nem vestígio de vida. Tudo é
clara e gema morta, sem movimento... Minha amiga, você é vítima de uma crença
absurda. Acabe com essa mistificação! Acabe com essa febre maluca! Vá ciscar
minhoca gostosa!...
Com essas palavras D. Análise saltou do ninho e se afastou às pressas, deixando a colega sozinha na penumbra do galinheiro, prosseguindo na enfadonha incubação.
Passaram-se mais dezoito dias, depois desse colóquio. Exatamente no 21º dia, a contar do início da incubação, deparou Análise com um bando de pintinhos, que pareciam outras tantas bolas macias de veludo e creme. E, no meio dos pequeninos, Intuição, a ciscar valentemente chamando com um alviçareiro glu-glu-glu toda vez que encontrava um suculento petisco para a dileta prole. Os pintinhos acudiam pressurosos, mas só engoliam o biscato depois que a mãe tomava no bico e jogava no chão, gesto que, em linguagem galinácea, quer dizer: “É comestível! Não é veneno!”...
– Onde foi você arranjar esse
bando de pintinhos?
– perguntou Análise cheia de
surpresa. - São meus filhos
– respondeu a outra, continuando
a ciscar.
– Saíram dos meus ovos; doze, não
gorou um só...
– Uééé!
– fez a outra, entre pensativa e
incrédula.
– Então, havia mesmo vida
naquelas cascas brancas? Penso muito...
– Vida potencial, que se fez vida
atual pela incubação
– replicou a outra, enquanto
descobria mais uma minhoca gorda na terra úmida.
– Você não teve fé no invisível;
destruiu com sua profanidade a sacralidade da vida dormente...
E houve um grande silêncio em derredor...
(Fonte: ROHDEN, Huberto.
Filosofia da Arte. São Paulo: Martin Claret, 2008.)