ACERVO VIRTUAL HUBERTO ROHDEN E PIETRO UBALDI

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quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

O Peixe e o Passarinho

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“Num grande lago, uma multidão de peixes ferozes vivia comendo-se uns aos outros.
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Deus, que eles não conheciam e que os estava olhando do alto, teve compaixão deles e um dia chamou os seus anjos e assim falou: “Meus filhos, aí embaixo na Terra, no abismo de um lago fundo, está um povo de peixes ferozes porque são ignorantes. Eles também são vossos irmãos. Mas a luz não chega àquele abismo escuro. Para que a luz chegue até lá, é necessário que um mensageiro da verdade, um anjo, se encarne no meio deles e se sacrifique para viver com eles, na profundeza e nas trevas, que sofrerá muito por isso. Mas o sacrifício é a lei do amor. Quem de vós quer sacrificar-se para levar a minha luz até lá, encarnando-se no corpo duro de um peixe?

Os anjos ficaram calados e tristes. A prova era dura demais. Perder as asas, a liberdade e a luz dos céus, para abismar-se nas águas pesadas e escuras e ficar fechado naquela profundeza — só em pensar nisso tirava o ânimo. O amor era grande, mas o susto também. Assim, a maioria ficara indecisa, sem saber o que dizer.

Só um anjinho, o menor de todos, ficou de lado, envergonhado de si mesmo, por ser a sua veste menos branca do que a dos demais. Ele olhava para si mesmo sem ter coragem de falar. E pensou: eu sou assim feio porque prometia com facilidade e depois não costumava manter a minha promessa. Agora é a minha vez de ir para me purificar ainda mais. Agora é a mim que cabe ir e não aos outros. Devo resgatar-me num sacrifício absoluto até enfrentar o martírio e a morte.

O pobre anjinho olhou para Deus, olhou tremendo, sem ter a coragem de falar. Deus olhou para ele e compreendeu tudo. Viu o sacrifício desta alma ardente e o seu grande amor, e aceitou a oferta.

Só para confirmar a oferta e aceitação, Deus lhe falou: “Então, meu filho, tu queres ir”? O anjinho respondeu tremendo: “Quero”. Deus acrescentou: “Vai, meu filho, a hora chegou. O teu destino se cumpre. O Cristo mesmo te ajudará, ficará sempre perto de ti, será o teu anjo da guarda”.

Com um profundo olhar de amor, os outros anjos despediram-se do seu irmão. Uma grande música levantou-se nos céus e o anjinho, pequenino, abismou-se de lá até às águas turvas do lago, aí encarnou-se na forma material de um peixe.

A queda foi terrível e dolorosa. O anjinho perdeu a consciência da sua natureza e começou a despertar apenas como humilde bichinho, filho do novo ambiente. Ele era um peixinho bonito que nadava ligeiro, única liberdade que lhe ficara da grande liberdade espiritual dos céus.

Cresceu como peixe no mundo feroz dos peixes, mas não conseguia concordar com os seus instintos. Não gostava de agredir o seu próximo para comê-lo. A luz de cima pouco a pouco começou a revelar-se. Aí iniciou-se a luta entre ele e o ambiente dos seus semelhantes. E quanto mais crescia, tanto mais se sentia um desterrado. Logo que amadureceu, sua alma revelou-se toda e começou a missão de civilizar os seus irmãos.

Esta missão era a de trazer a luz do Céu para ser percebida até nas profundezas das águas turvas do lago, ambiente dos peixes; era a de substituir a lei da ferocidade, segundo a qual o mais forte esmaga o próximo, que também tem direito à vida, por uma lei de justiça, bondade e amor; era a de substituir o egoísmo que divide pelo amor que une, a ignorância que leva ao erro e por isso à dor, pelo conhecimento que não erra e conduz à felicidade.

Assim transcorreu a vida deste pobre ser num martírio. Ele sofria, antes de tudo, por ter de viver preso na casca dura do corpo de um peixe, num ambiente material que limitava todos es seus movimentos, verdadeira cadeia da alma. Sofria pela incompreensão dos seus semelhantes que o condenavam em tudo e, apesar disso, lutando todos os dias, chegou perto da velhice, cumprindo a dura missão de civilizar sua gente. Sofria pelo que lhe davam em troca do seu amor, pela solidão terrível, por falta de verdadeiros amigos, pela saudade dos bons que tinha deixado no Céu. Um dia sentiu-se tão cansado desta luta, que desejou a morte.

Ia assim desconsolado, tão perto da superfície da água que quase quisera fugir de lá para os seus céus. Procurava olhar para as grandes árvores que cresciam â beira do lago e para a luz maravilhosa do sol. Quantas cores, que vida maior lá fora da sua cadeia de água!

Uma grande floresta crescia perto do lago, cheia de pássaros livres, voando no ar. Entre eles havia um passarinho humilde e bonito, todo azul, cor do Céu, como o nosso peixe. Ele era feliz na sua liberdade. Era muito jovem e tinha a alegria despreocupada da juventude. Só começava a ficar um pouco triste por não achar amor e verdadeira amizade no seu mundo. Sentia-se sozinho! Procurava, mas não achava. Que teria então acontecido?

Voando, ele olhava do alto para o grande lago e, às vezes, descia até à sua margem e, apoiando-se sobre os ramos que se espalhavam na superfície da água, olhava para o fundo, para descobrir o mistério deste outro mundo escuro, desconhecido dele.

Um dia, quando estava assim olhando, mais triste que de costume, viu o peixe azul nadando quase fora da água, aproximando-se sempre mais, sem medo nenhum do pássaro. E este não pensou em agredir o peixe para comê-lo. Para o peixe, este era o primeiro ser encontrado que, por não agredir, lhe inspirou confiança. Era tanta a fome de bondade e amor em ambos que estes dois seres, o peixe e o passarinho, continuaram olhando-se, procurando aproximar-se, embora assim diferentes nos seus corpos, mas atraídos por uma instintiva afinidade de alma. Poderia o amor apenas unir em amizade dois seres naturalmente inimigos?

O peixe nadava e o passarinho olhava. Até que, num certo momento, o peixe bateu com a boca nas unhas dos pés do pássaro, mergulhadas na água. Foi como um abraço e um beijo. E os dois tornaram-se amigos.

A amizade firmou-se. Cada dia o pássaro descia no ramo mergulhando os pés na água e cada dia o peixe subia até a superfície, beijava os seus pés e começava assim a conversa.

Era uma conversa sem palavras, apaixonada e singela, de alma para alma, entre dois seres na aparência diferentes, mas que procuravam o mesmo consolo um no outro, porque ambos não tinham achado, na raça dos seus semelhantes, seres que eles pudessem amar em absoluta sinceridade, como se amam os anjos.

O pássaro não era uma grande alma caída do Céu para enfrentar, em missão, as tempestades na Terra, o martírio na vida material. Ele era uma alma virgem, simples e pura, desabrochando à luz da vida, mas precisamente por esta maturidade de um lado e simplicidade do outro, eles tinham muito a se dizer, fundindo-se no mesmo desejo de bondade e amor.

Assim continuou a conversa entre eles. O pássaro contava as maravilhas do ar livre, das grandes vistas, da leveza das nuvens e das cores bonitas de seu mundo. O peixe escutava triste e não podia falar senão da escuridão das trevas no fundo do lago.

O pássaro dizia ao peixe para confortá-lo: “Procura subir, sai da água e voa comigo. Tu sofres porque estás mergulhado na materialidade. Sobe até cá onde os horizontes são mais vastos, sublimes e elevados! Eles são verdades. Eu vivo neles. Troca essas lamentações e tristezas por uma grande alegria. A vida é bela. Por que não queres ser também feliz como eu sou? Entoemos juntos o hino da alegria e da felicidade”.

E o peixe respondia: “Amiguinho meu, eu não posso sair da água. Estou fechado nesta casca de peixe. Não adianta que a minha alma compreenda. O meu corpo fica preso nesta cadeia de trevas duras, estou amarrado a esta minha natureza animal e, enquanto viver aqui para cumprir o meu dever, não poderei libertar-me dela. Conheço a tua felicidade espiritual e mais do que ela. Mas desci para melhorar os meus semelhantes. Esta é a minha tarefa a cumprir, esta é a cruz do dever à qual estou pregado. Não posso sair daqui, tem piedade de mim.

Tu, meu passarinho, tens outro destino, o teu caminho não é o meu. Para ti, na tua simplicidade, o paraíso é coisa natural. Achas fácil a alegria. Mas na minha vida tive, tenho e terei sempre só dever, dever, dever. O meu destino é de trabalho e de dor. A minha alegria seria só de fugir deste corpo feio, para voltar à minha pátria. Mas o meu dever é aqui, onde só o fato de viver é para mim um sofrimento. Comprometi-me com Deus antes de nascer, aqui confirmei, depois, novamente a minha aceitação deste martírio, onde devo ficar crucificado enquanto viver. Tem piedade de mim”.

Mas o passarinho, que na sua simplicidade não podia compreender tudo isso, para consolá-lo, continuava: “Amigo peixe, procuras subir da água, se tu não podes, é porque tomas comida pesada demais. Deixas de comer a carne dos teus semelhantes, experimentas encher o teu estômago somente de água e ficar satisfeito, assim serás mais fácil para ti subir com um corpo mais leve”.

O peixe escutou e experimentou. Mas embora a fome crescesse e também o seu esgotamento físico, ele não conseguiu tornar-se leve bastante para poder subir no ar. Ele voltou, então, ao amigo passarinho e manifestou suas queixas.

Agora este explicou-lhe que, para tornar-se mais leve e sair da água e voar, precisava de um sentimento ainda mais sutil. E aconselhou-lhe quando estivesse com fome, em lugar de engolir água para encher o estômago, saísse à superfície para engolir só ar fora da água. E mostrou como exemplo a si mesmo que vivia quase de nada, comendo apenas algumas sementes leves, mas sobretudo vivendo do ar puro do céu.

O peixe escutou e quis experimentar melhor, porque também outras forças o empurraram neste mesmo caminho.

Antes de tudo, os peixes, seus semelhantes, exigiam dele todas as virtudes e renúncias, e ele também se sentia amarrado à obrigação de ser o primeiro a dar o bom exemplo do dever, vivendo plenamente as suas teorias. Precisava, absolutamente, ser perfeito e realizar isto no corpo de um peixe, isto é, bem amarrado a todos os instintos da animalidade inferior.

Era o direito dos seus semelhantes e também o seu maior desejo para confirmar as verdades pregadas, o seu sacrifício em tudo o que era materialidade, em favor da espiritualidade. Concordavam todos neste seu martírio até o fim, para confirmar a sua missão. Muitos santos não fizeram o mesmo, descuidando dos seus corpos, exigindo renúncias, sacrifícios e trabalhos demais, até deixá-los morrer?

Ora, este método estava de acordo com o seu egoísmo, isto é, com o seu desesperado desejo de acabar com aquela sua vida de peixe e voltar aos seus céus. Ele almejava a morte para chegar à sua libertação. Havia só um prejuízo, mas apenas para os seus semelhantes que, assim, perdiam o apóstolo semeador das mais altas verdades e teriam de caminhar, sozinhos, sem aquele emissário do Céu. Para ele, cuidar de si mesmo, era o maior sacrifício porque o afastava da libertação, e aceitar todas as renúncias era a maior alegria porque estas destruíam a sua casca feia de peixe. E concordava com o seu mundo, onde todos procuravam só explorá-lo, tirando dele o maior esforço possível. Ele continuava amando o seu próximo, também quando este amor tirava tudo dele. Mas o amor não pode cessar de doar, mesmo quando isso lhe custe a vida. Havia uma completa concordância entre o seu próximo que procurava tirar dele todas as energias e ele, que por amor gostava de entregá-las todas, servindo até ao esgotamento final, onde estava a sua libertação.

Ia-se, dessa forma, amadurecendo este seu martírio por esgotamento, martírio refinado, sem sangue, mas mais doloroso, supremo sacrifício de amor.

O peixe continuou pondo em prática os conselhos do passarinho, vivendo somente do ar. Quando estava com fome, subia à superfície, engolia ar e com o estômago bem cheio, não precisava de outra comida.

Continuou assim algum tempo, trabalhando sempre mais aperfeiçoando o cumprimento do dever, sacrificando-se pelo próximo que ficava ainda mais satisfeito, aproveitando-se do sacrifício dele. Só uma pequena coisa ameaçava este belo jogo. O seu corpo ia-se esgotando, a natureza sugada de todos os lados não conseguia viver neste estado e inclinava a cabeça, vencida. Só a alma do peixe, embora sofrendo martírio, estava feliz. O povo também ficava satisfeito. As teorias pregadas estavam sendo vividas com um exemplo santo e um grupo de novos seguidores estava pronto para explorar o mestre como um santo, depois da sua morte. E este podia morrer feliz, porque a missão foi cumprida e ele sacrificou-se por ela. Grande concordância, na mais perfeita ordem.

E de fato, um belo dia o passarinho desceu ao ramo mergulhado na água, para continuar a conversa com o seu querido amigo. Mas este não apareceu.

Somente no lugar onde ele costumava chegar, o passarinho viu o corpo morto de um peixe a flutuar na água. As árvore, amigas, que escutaram as suas palavras, tinham deixado cair à sua volta uma roda de folhas, homenagem da natureza inferior ao sacrifício de um anjo.

O passarinho chorou e chorou. Voltou cada dia ao mesmo lugar, a sua vida inteira, triste por falta do amigo querido. Ali, ele chorou as suas lágrimas todas, até que chegou, para ele, também, o fim da vida.

Então ele quis subir pela última vez ao céu, até às nuvem e embriagou-se de ar livre. Depois, esgotado, desceu ao ramo dos colóquios, mergulhou os pés na água e deixou-se cair nela morto. Ali ele ficou no mesmo lugar onde tinha jazido morto o peixe, seu amigo.

As árvores amigas deixaram cair à sua volta, desta vez uma roda de flores perfumadas, homenagem merecida pela inocência deste outro amigo.

O primeiro já tinha fugido há tempo para o Céu e ali estava esperando o seu amigo. E logo foi ao encontro dele.

Assim que o encontrou, o abraçou. O anjo do sacrifício abraçou o anjo da inocência, e o amor de ambos no desterro do tempo no mundo foi confirmado na eternidade dos céus.

O anjo do amor na dor levou consigo o anjo do amor na humildade. Levou-o ao ninho que ele tinha aprontado para ambos no seio do Cristo”.

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Escrita por Pietro Ubaldi em 11 de dezembro de 1955 e publicada, pela primeira vez, na revista Santa Aliança do Terceiro Milênio em seus números 9 e 10, de 1956. 


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