Por Aloísio Wagner
Gostaria de compartilhar com vocês o testemunho de uma jornalista, publicado no jornal Vanguarda em Julho / Agosto de 2001, e que por sua vez, acho muito bonito e emocionante:
"Testemunho de Gratidão
Há 34 anos atrás, jovem e atravessando um período de imbecilidade e pretensão, julgava-me o centro do mundo. Criada em colégio de freiras e numa família católica, perdera a fé e julgava essa perda definitiva, o que me angustiava um pouco. Não. Eu não acreditava nem mesmo em Deus. Pouco antes numa coluna que mantinha na revista “O Cruzeiro”, escrevera uma crônica: “À procura de Deus”, e recebera cartas do Brasil inteiro, de quase todas as religiões existentes, tentando ajudar-me. Procurei quase todas. Nenhuma me convenceu. Por simples curiosidade fui visitar Chico Xavier, e, sem me identificar e nem dizer-lhe uma só palavra, ao atravessar a multidão e aproximar-me dele, vi-o estender-me a mão e sorrir-me com as seguintes palavras: “Não se torture procurando Deus nos templos, nas igrejas ou nos centros espíritas, minha filha. Procure-O dentro de você.” O ato pareceu-me estranho, mas não lhe dei maior importância. Não compreendera.
Nesse ano de 1955, vi num jornal notícia sobre a chegada ao Rio de um famoso escritor italiano – Pietro Ubaldi. Como jornalista, resolvi entrevistá-lo. Não lera seus livros, nem sequer conhecia suas idéias. Era apenas um escritor famoso e, portanto, notícia.
Encontrei no hotel um homem tranquilo e simples, do qual gostei gratuitamente. Magro, ar ascético, olhos de criança boa. Fiz a entrevista, algo chocada com o que ele falou da “Sua Voz” e de seus livros. Classifiquei-o como um sonhador visionário de grande cultura e inteligência, lamentando-o. A entrevista foi publicada na revista “A Cigarra”, de fevereiro de 1956. Despedi-me e ia sair, quando ele me chamou.
- Espere, por favor. Tenho aqui uma mensagem para a senhora.
Senti que devia ser honesta com ele e confessei: “Não se ofenda, por favor, mas não acredito em mensagens do Além, nem mesmo acredito em Deus.”
Pietro Ubaldi sorriu mansamente.Não faz mal. Não precisa ler agora. Um dia a senhora vai ler. Guarde-a. Ela será muito importante para a senhora.
Estendeu-me um papel sobre o qual escrevera algumas linhas. Sem olhar, tomei o papel, colocando-o dentro de um livro, que trazia comigo e despedi-me. Esse papel, utilizei-o como marcador de leitura desse livro. E, esqueci-o. Nem por um instante, senti vontade de ler o que ali estava.
A vida me poupou nos anos seguintes. Um casamento desfeito de forma mesquinha e revoltante, uma mudança de cidade e de caminhos; tive de trabalhar para sobreviver. Recebi convite para um emprego em São Paulo, como redatora numa agência de publicidade. Ambiente frio, hostil e entre tantos desconhecidos.
Na noite de 31 de Dezembro de 1962, encontrava-me sozinha em meu apartamento. Recusara todos os convites para “reveillons”, e preferia fazer um retrospecto de minha vida, à sós. Chovia muito. Eu ouvia as gargalhadas, o estourar das champanhes, a música, os cantos que vinham de outros apartamentos. E senti a solidão em sua plenitude. Que era eu? Uma escritora insatisfeita consigo mesma e com seus livros. Nenhum filho vivo. Que valor possuía a vida? Porque persistir na farsa de sorrir, viver levianamente, fingindo encontrar prazer em coisas fúteis como ganhar dinheiro, vestir-me bem, namorar, dançar, suportar os olhares sempre iguais da cobiça masculina? Estava farta.
Decidi que não enfrentaria 1963. Andei pelo apartamento povoado apenas de meus fracassos idealistas e ingênuos. Era hora de parar. Cheguei à janela. Morava no 13° andar, na avenida Paulista. Lá fora, o vazio de sempre. Homens e mulheres se embriagando para afogar suas próprias decepções. E, lá embaixo, o pátio de cimento a atrair-me. Tão fácil! Um passo para subir no sofá, o segundo no peitoril e o terceiro...a paz. O esquecimento. O Nada como solução salvadora.
Algo, porém, me retinha. O instinto de conservação. Lembrei-me de uma garrafa de conhaque, que comprara para fazer remédio para tosse, e que nem utilizara. Sempre tive a verdadeira ojerisa por bebidas alcoólicas. Fui até à cozinha, abri a garrafa e enchi um copo. Tomei-o de uma só vez, a garganta queimando, engasgando com aquele gosto horrível. Voltei à janela. Dei o primeiro passo planejado, subindo ao sofá encostado à janela. Recuei. Ainda era insuficiente a coragem. Voltei à cozinha, enchi o segundo copo até a borda e virei-o de um trago. Já bêbada, o copo escorregou-me das mãos e espatifou-se no chão. Cambaleando, mas com a mente lúcida, repeti o primeiro passo e, ao dar o segundo, escorreguei no peitoril molhado pela chuva e caí. Não para o pátio, mas sobre o sofá. Perdi os sentidos.
Acordei de madrugada. O mundo inteiro era um silêncio só. A chuva molhara todo o meu corpo. Cambaleando, a cabeça parecendo estourar, levantei-me. Que fracasso! Nem a morte me aceitava! Mas eu estava decidida. Troquei a roupa. Àquela hora, os ônibus e carros trafegavam por ali em alta velocidade. Na madrugada chuvosa, os motoristas não veriam o vulto vestido de negro, que se colocaria à sua frente.
Ao tocar na chave para abrir a porta do apartamento e sair, algo estranho como que me puxou para a estante de livros que cobria toda a parede da saleta de entrada. Estendi a mão maquinalmente e peguei um livro qualquer. De dentro dele caiu um papel aos meus pés. Peguei-o. E lí, sem compreender da primeira vez:
“NESTE MOMENTO EM QUE VOCÊ SE JULGA TÃO DESESPERADA, FILHA MINHA, SINTA O AMIGO QUE ESTÁ AO SEU LADO, COM AS MÃOS SOBRE SEUS CABELOS, OFERECENDO-LHE SEU AMOR, QUE É O MAIOR DE TODOS. DEIXA QUE ESTE AMIGO LHE FALE E CONSOLE. VOCÊ PRECISA VIVER PORQUE ELE O QUER. ACALME-SE E ENTREGUE-SE A ESSE AMOR, FILHA QUERIDA. O NOME DESSE AMIGO É JESUS.”
Reli o papel duas, três, muitas vezes. E então veio-me um pranto convulso. Realmente, eu “sentia”. Sentia mãos suaves que me acariciavam a cabeça. Sentia o calor de um amor imenso aquecendo-me. Sentia o Amigo, no qual “sabia” poder confiar e socorrer-me. Todo o desespero, a angústia, a solidão, o horror pela vida e por meus semelhantes, como que se desfazia naquele pranto.
O papel molhado com minhas lágrimas continuava apertado em minhas mãos. E lembrei-me. A visita àquele homem no Rio. Aquele homem de olhos doces e voz tranquila, estendendo-me a mensagem, que eu desprezara. Fui apanhar o livro, de onde ele caíra. Lá estava: novembro de 1955. Aquele homem sabia. E me dissera: “um dia a senhora vai ler”. Por que? Como? Minha cabeça confusa e fervendo de indagações era um contraste com a paz que descera sobre mim. Somente adormeci quando o dia 1° de Janeiro de 1963, já ia em meio.
Daí para frente, já não mais à procura de Deus, pois Jesus, através de Pietro Ubaldi, O trouxera do mais profundo do meu íntimo, comecei a estudar para compreender melhor o que ocorrera. Comprei “A Grande Síntese”, lendo-o muitas vezes até penetrar nas verdades ali contidas. Li Kardec. Passava horas pensando, analisando, compreendendo os contrastes que dantes me revoltavam.
Nunca mais vi Pietro Ubaldi. Sentia um certo pudor de procurá-lo para lhe contar a verdade. Ao ler a notícia da sua morte nos jornais achei que o fato nunca mais seria narrado, até há quase um ano atrás quando fiquei sabendo da existência da Fundação Pietro Ubaldi, em Campos. Então, cheguei à conclusão de que deveria entregar-lhes este testemunho de gratidão.
Hoje, aposentada e sabendo que aquele pudor era ainda um resto de orgulho humano, escrevo-lhes. No limiar da velhice, sinto-me gratificada por estar viva. Escrevo livros para adolescentes, com meu verdadeiro nome: Lourdes Gonçalves – e mantenho contatos maravilhosos com essa gente miúda que me alimenta a fé e o amor a tudo que é vida vinda de Deus. O dia em que partir, não será mais para fugir e refugiar-me no nada, para abandonar um plano inferior por outro maior. Encontrei Deus em mim mesmo como em tudo à minha volta, tal como predisse Chico Xavier. E com Deus não há solidão. Não há desespero. Não há fracassos. Há apenas a certeza de que a passagem por este planeta Terra é apenas um momento rápido de aprendizado para aperfeiçoamento e volta ao UNO.
E isto devo a Pietro Ubaldi, que me entregou em mãos o recado de Jesus.
Nova Friburgo, Dezembro de 1989.
FLORENCE BERNARD (Pseudônimo da Sra. Lourdes Gonçalves, publicado no ano de 1995, com sua autorização)."