Vai-se exausto de forças, carregado do pó da viagem, pesado de lama, de lágrimas e de sangue. Quanto trabalho para atravessar a vida! Em nenhum ponto se sabe como a alma pôde arrastar-se até lá. À espera do abraço da morte irmã, a dor chama e martela. O leitor não sabe quanto sofrimento humano condiciona certos triunfos do espírito. Estou freqüentemente muito cansado. Sinto-me culpado e abatido... Esta minha pobre irmã carne chora abafada, já sem coragem para protestar. Pobrezinha! Ela sabe, porém, que o seu sacrifício era necessário a estas afirmativas de uma vida mais alta. Ofereceu-se e recua hoje, humanamente doente, sem um lamento. Pobre irmã, obrigado por teu pequeno heroísmo. Ela o compreendeu. Ensinei-lhe, dia a dia, que ela não podia ser um fim, mas apenas um meio. E ela disse ao meu espírito: “Vive tu, então, que vales mais”. Há tempos, pedi ao meu corpo que se oferecesse em holocausto e ele me respondeu: Toma-me. E agora, ele é tão distinto e afastado de mim, que o considero como uma outra criatura que amo, porque à sua imolação devo a verdadeira vida. É justo que o menor se sacrifique ao maior. A minha piedade deixa-o morrer tranquilamente.
A dor bate, martela, consome e reedifica. É um martelar rítmico, lacerante, que fere e desperta as profundezas. Esse martelar arranca de minha alma gritos que são a sua voz, uma voz que conta, com lógica e calma, uma história trágica e estupenda, profunda e sublime — a história de uma alma que conquista o infinito.
É para lançar estes gritos, que são minhas obras, que enfrento e empenho minha vida; é para viver, viver e narrar este fenômeno supremo que suporto, sem auxílio nem piedade, a minha imensa dor interior, diante da qual estou sozinho e não posso estar senão sozinho. Com a agonia do humano se resgata o triunfo no divino.
Contei às pedras a minha dor. Contei-a às ondas humildes, às árvores amigas, ao céu e ao vento. Minhas lágrimas ardentes caíram sobre as pedras e elas não se partiram. O homem olhou-me rindo e as criaturas irmãs recolheram-se pensativas, em silêncio. A onda humilde e casta vai ainda, murmurando, levar meu pranto de crista em crista, sem compreender. É preciso ter gritado ao mundo, sem resposta, uma grande paixão incompreendida; é preciso arrastar-se, sangrando, sobre espinhos; é preciso ter atravessado o deserto de todas as solidões e de todos os abandonos; é preciso ter perfurado, com a cabeça, as duras portas do céu para abri-las e, com o último alento, ter atirado para dentro a alma encolhida, para que o infinito se entregue e a visão de Deus apareça em seu deslumbrante esplendor.
Chegam, então, do céu, ao qual o espírito se prende como última salvação, as provas maiores. Parece que as forças da vida percebem possibilidade de uma fuga e nos agarram para impedi-la. Parece desencadear-se, no dinamismo cósmico, uma rebelião contra a nascente exceção, que viola a regra geral, e começa o assalto. Só quem o experimentou pode imaginar que coisa é esta insurreição de forças que exigem o nivelamento na mediocridade.
Trágico e ciclópico destino, de conquista e de aflição, de visões e de trevas, em que me debato, criando no pensamento, enquanto peço um repouso que não existe senão na morte. Só no pensamento reside a minha mais intensa sensação de viver. Nestes contatos super-humanos está, para mim, a razão de tudo, o refúgio, o repouso, a nutrição e o cansaço. Sinto meu organismo estalar sob tamanha tensão. E já estou sobrecarregado com o trabalho normal de todos, necessário para o cumprimento dos deveres e para se ganhar a vida. Mas o espírito está calmo, observa satisfeito e vai espreitando os sintomas do fim, inebriado com a sua criação, triunfante e contente deste lento martírio, sonhando, nele, sua libertação e redenção.
Ofereço, fisicamente, o espetáculo do homem prostrado pelo lento trabalho da exaustão. Tenho a sensação de uma longuíssima agonia em que as forças físicas se diluem. Não é moléstia, nem lesão, ou alteração orgânica. É o extinguir-se, o dar-se de uma forma de vida, enquanto o essencial se coloca mais no alto. Os dois termos, matéria e espírito, são antitéticos. Só em tal estado de prostração física se avizinham as transparências do céu. A ascensão espiritual é feita também desta desmaterialização exterior; tal sublimação da alma implica também estas transformações íntimas da matéria. O corpo se extingue, e vaporiza-se numa dilatação imensa. Só neste estado se pode falar de coisas que já não são da terra. Somente com a alma nua diante de Deus e com o corpo nu diante da morte se assume o dever da sinceridade absoluta e de certos testemunhos supremos; somente sob o martelar tenaz da dor, olhando para a morte e apresentando-se além dela, se tem o direito de levantar a voz e de se falar em nome de Deus.
E eu falarei, pelo direito que me dá o ter sofrido tanto, ter-me oferecido em minha fadiga que foi até à exaustão, e por ter Cristo no coração; pelo direito que me confere o batismo da dor, o espasmo da paixão, o dever, o amor. Uma voz imensa eleva-se de meus laboriosos silêncios; a dor me arrancará novos clamores, a visão me encherá de novos entusiasmos; eu senti algo de inolvidável no tempo, lá longe, nos infinitos espaços do meu espírito e não posso esquecer, não posso calar. E direi, obedecendo a uma ordem que me é superior, que só eu conheço, e que está por sobre todas as ordens humanas. Tenho de dizer toda a minha verdade antes de morrer e, na morte, dar testemunho de minhas afirmações. Devo deitar a semente para que um dia germine. Recebi o archote da verdade e devo passá-lo aos que me seguem. Devo, até meu último alento, com a palavra e o exemplo, dar a certeza da idéia que possuo. O que importa é a idéia e não este inútil trapo de minha pessoa. Num exaltamento de todo meu ser, grito com toda a força de minha voz a verdade da vida eterna e da ressurreição no espírito. E digo: vede e tocai, vós que não credes — eu o vivi.