Por Huberto Rohden
Carta de Huberto Rohden publicada no livro:
EINSTEIN – Reflexões Filosóficas, MONTEIRO, Irineu, Martin Claret
Editora, 4ª edição.
Digitado por Lupércio Stopato da Fonseca
Washington, 18/12/50.
“Prezado amigo Sr. Irineu Monteiro”,
São Paulo – Brasil.
Vai esta com os meus sinceros votos de felicidade para o Natal e Ano
Novo e para sempre. Há tempo que estou com sua carta de 4.11, que muito lhe
agradeço. Tive de esperar o início das férias de Natal para lhe dar uma
resposta mais explícita. Você quase o único amigo, aí no Brasil, que me escreve
cartas de caráter filosófico-metafísico-espiritual. Mas, como já lhe disse em
carta anterior, é impossível, numa carta, dar-lhe qualquer explicação adequada
sobre metafísica. Metafísica, como você sabe – tanto assim que revela sempre
profunda noção fundamental dos termos – é o que fica para além da física, quer
dizer desse aspecto superficial da realidade cósmica que a pobreza dos nossos
sentidos atinge. Há quem considere essa superfície – os fenômenos – como sendo
a própria realidade, além da qual nada exista de real. Essa filosofia infantil
– se é que tal nome merece – não pode ser defendida por nenhum espírito que
tenha atingido maturidade.
No próprio terreno da física e química sabemos que há infinitas
realidades não atingíveis pelos sentidos, e tanto menos atingíveis quanto mais
reais. Ultraluz e ultra-sons são coisas tremendamente reais, mas absolutamente
imperceptíveis pelos sentidos humanos desajudados de instrumentos; e para além
da extrema fronteira atingida pelos nossos instrumentos se desdobra o universo
das realidades superiores, que para os nossos sentidos e instrumentos são
“inexistentes”, o puro nada. Já dizia o grande Estagirita que nossos sentidos,
e mesmo o nosso intelecto (não a razão, o Logos, o Nous) são como os olhos das
aves noturnas, que vêem perfeitamente na escuridão ou na luz crepuscular, mas
não enxergam coisa alguma em plena luz – a não percepção por causa do excesso
de realidade! A ciência moderna, - Einstein, Oppenheimer, Bohr, para nomear
apenas uns que mais conhecemos através das pesquisas atômicas – está em vias de
dar o golpe de misericórdia ao empirismo materialista; o materialismo do século
19 morreu por falta de matéria – que ironia! – pois a ciência do século vinte
reduziu a tal matéria a energia, vg. E = m.c². Energia é massa multiplicada pelo
quadrado da velocidade da luz, na fórmula einsteiniana, que serviu de base à
primeira bomba atômica.
Em face disso, achou a filosofia idealista ou espiritualista que, para
descobrir a verdade ou realidade, teria de se afastar da matéria, do mundo
fenomenal, indo em sentido diametralmente oposto. O próprio Platão sucumbiu,
parcialmente, a essa fatalidade idealista, estabelecendo completa separação
entre o EIDOS (Idéia) e o EIDOLO (Ídolo, imagem da idéia). Para ele, o espírito
é a única realidade, ao passo que a matéria é uma quase-realidade, uma miragem,
algo que parece ser real, mas é irreal, algo que possui apenas uma realidade
superficial, emprestada, mas não uma realidade real, interna, sólida.
Tanto empirismo (materialismo) como idealismo (espiritualismo) são
sistemas filosóficos extremos – extrema esquerda, extrema direita. Já o grande
Aristóteles, o mais ilustre discípulo de Platão, reconheceu a grande verdade
que nem materialismo nem espiritualismo podem ser adotados como filosofia
integral, completa e definitiva. Filosofia é necessariamente uma síntese de
duas antíteses, é a harmonia que resulta de duas forças antagônicas, centrífuga
e centrípeta, se quiser. Não há realidade separada dos fenômenos, embora a
realidade não seja idêntica ao fenômeno. A realidade é a essência de qualquer
fenômeno. Este é o efeito, aquela é a causa, não uma causa transcendente; são
uma e a mesma coisa olhada ora deste ora daquele lado, ora do lado ativo
(realidade), ora do lado passivo (fenômeno). Spinoza (realmente Bento de
Espinosa, filho de judeus portugueses que, por causa da perseguição católica,
emigraram para Amsterdã, onde Bento – Benedicto, ou em hebreu Baruch – nasceu,
viveu, sofreu, foi excomungado pela sinagoga, e morreu na flor da vida), era
grande demais para ser compreendido pelos pigmeus de seu tempo – e do nosso
tempo – mas Aristóteles nunca teve maior e mais inteligente discípulo que esse
judeu “pai do panteísmo moderno”, o que é absolutamente falso. Para ser
panteísta deve a gente ser extremamente ingênua. Nenhum gigante intelectual
chegaria ao absurdo de identificar Deus com o mundo, a causa com o efeito, a
realidade com os fenômenos, o infinito com o finito, o Todo com a parte.
Spinoza protestou contra a calúnia da sua própria sinagoga, mostrando que Deus
está em cada fenômeno, a essência de cada um deles, mas não idêntico com os
fenômenos. Mas a sinagoga dualista e transcendentalista não foi capaz de
compreender tão alta sabedoria.
Mais tarde, ela convidou Spinoza para voltar, mesmo sem nada revogar,
contanto que não continuasse a espalhar tão “espantosas heresias”; ofereceu-lhe
uma pensão vitalícia – Spinoza era muito pobre – só para ficar calado; o que o
grande pensador e exímio caráter recusou, preferindo continuar a ganhar o seu
pão polindo lentes e proclamar a verdade, a viver em fartura e calar a verdade.
A filosofia totalista de Aristóteles, Spinoza e outros corifeus do
pensamento é a única que vai prevalecer no futuro, entre homens realmente
maduros. Expressa em termos religiosos, diríamos: Deus é a essência (ou alma,
como Spinoza diz) do mundo. Ele é imanente em qualquer ser. Cada ser, desde o
menor até o maior, é uma manifestação de Deus. Os seres não são governados por
leis – mas pelo Deus imanente neles. Deus está no mundo, e o mundo está em
Deus, assim como a causa está no efeito, e o efeito está na causa.
A conseqüência é que, para achar a Deus, não tenho de fugir do mundo,
como os idealistas, espiritualistas, ascetas e budistas pensam; mas tenho de
investigar mais profundamente o mundo adentro, até atingir a essência ou causa
suprema desse efeito. Esse “cavar para dentro”, naturalmente exige no homem a
ampliação da sua faculdade ultra-sensitiva, metafísica – a razão, a alma, o
espírito (Nous, Logos, na Bíblia, pneuma).
De maneira que o que nós entendemos por METAFÍSICA é ao mesmo tempo
transcendente e imanente; ultrapassa a capacidade dos sentidos e do intelecto,
e isto é o “trans”; mas não está fora, senão dentro, dos fenômenos sensitivos,
e isto é “in”.
A humanidade amanhã – isto é, a elite superior – irá necessariamente
via síntese, rumo Totalismo, que é o Cristianismo de Cristo, ainda que não de
muitos cristãos. E é dever nosso – nós, de você também, a quem Deus outorgou
maiores luzes de compreensão, é dever nosso preparar esse caminho para a
humanidade de amanhã. Cada um deve contribuir a ser pedra para esse edifício.
Para este fim, devemos também fundar, em um ou mais dos grandes centros, focos
de irradiação dessas idéias e mostrar o que é de fato o Cristianismo.
O HOMEM-TOTAL da ética só pode nascer do HOMEM-TOTAL da metafísica.
“Agere sequitur esse”, cada um faz o que é, externa em atos os seu ser. Mas o
ser do homem é a apreensão da REALIDADE. O Homem que nunca chegou a apreender a
REALIDADE (DEUS) não pode ser REALISTA, no verdadeiro sentido da palavra, isto
é, TOTALISTA (é pena que não se possa dizer totalitária ou integralista, uma
vez que estas palavras foram envenenadas com outro sentido).
O Brasil é um país sumamente acessível a essas idéias. O nosso povo,
ao menos as classes educadas, tem mais propensão para amplas sínteses
metafísicas do que os anglos. Idem, os latinos, embora estes últimos tenham
sido grandemente cerceados nos seus vôos pelo peso morto dos dogmatismos e
ritualismos eclesiásticos.
Vamos preparar o caminho para um Brasil mais sólido, puro, amplo –
mais brasileiro! Mas sem grande compreensão não há grandes fenômenos na
humanidade.
Demos ao Brasil grandes idéias!
Antes de tudo, tenhamos nós mesmos grandes idéias!
Abraço do amigo,
HUBERTO ROHDEN.