No tempo em que eu gostava de ter algo não
consegui ser alguém.
Escravizava-me o que tinha ou desejava ter.
As quantidades de fora impediam a realização da
minha qualidade de dentro.
O meu violento Ter eclipsava o meu suave Ser.
Despossuí-me, então, de todas as minhas posses –
e encontrei paz diante de mim mesmo.
Encontrei o meu puro e desnudo Ser,
O meu Eu divino em toda a sua alvura e
castidade,
Longe de todas as profanidades dos meus Teres...
Entretanto, como cidadão desta terra, tenho de
viver no meio das coisas terrestres.
Tenho de lidar com objetos materiais...
Como matéria morta em forma de dinheiro, casas,
terrenos, ferro, cimento, pedra, cal, e outras materialidades...
Surpreendi-me novamente proprietário de coisas
materiais – e recuei, horrorizado...
Que triste apostasia a minha!
Por que esse regresso ao cárcere de antanho?...
Depois de ter gozado as iguarias do reino de
Deus tornei ao bagaço imundo dos animais da terra?...
Assim pensava eu.
Até que verifiquei, com exultante júbilo, que
hoje não possuo nada daquilo que em minhas mãos está.
Hoje, já não sou possuidor de coisas minhas –
sou apenas administrador das coisas de Deus, em prol dos filhos de Deus, meus
irmãos.
Hoje, não existe mais entre o Eu e o Meu um
vínculo real que prenda o meu sujeito àqueles objetos.
Cortei os liames entre o Ser e o Ter.
Nada mais possuo desde que sou possuído pelo
Cristo.
Sou simples administrador daquilo de que me
julgava possuidor.
Não me escraviza o que tenho nem o que desejo
ter – porque nada tenho nem nada desejo ter...
Administrando o que é
Deus, sem nada possuir que seja meu...
Oh! gloriosa liberdade dos filhos de Deus!
Gerindo negócios materiais, já não sou por eles
derrotado...
Possuidor não possuído – que estupenda
conquista!
Ser apenas administrador do patrimônio de Deus –
como isto é leve e luminoso!...
É roçar de leve as coisas materiais, com asas
etéreas de andorinha, como imperceptíveis adejos de borboleta...
É pousar de mansinho sobre as pétalas duma flor,
sem as lesar, sem a elas se prender...
É deixar todas as coisas tão puras e virgens
como elas saíram das mãos de Deus – em vez de profaná-las e prostituí-las com a
violência brutal da cupidez egoísta...
Outrora, possuindo, profanava eu tudo quanto
possuía ou desejava possuir – hoje, tudo que me foi entregue vem aureolado da
sacralidade de intata virgindade...
Naquele tempo, cometia eu o sacrilégio de
considerar meus certos bens de Deus – hoje sou redimido da irredenção dessa
sacrílega usurpação...
Hoje considero todas as coisas como propriedade
única e exclusiva de Deus em prol da humanidade...
(A Voz do Silêncio – Huberto Rohden)