Auckland, Nova Zelândia, 1ª palestra 28 de março,
1934.
Amigos, penso que cada um de nós está aprisionado
seja num problema religioso seja numa luta social ou num conflito econômico.
Cada um de nós está a sofrer pela falta de compreensão destes variados
problemas, e tentamos resolver cada um deles por si; isto é, se têm um problema
religioso, pensam que o vão resolver pondo de lado o problema econômico ou
social e centrando-se inteiramente no problema religioso, ou se têm um problema
econômico pensam que vão resolver esse problema econômico limitando-se
inteiramente a esse conflito específico. Ao passo que eu digo que não podem
resolver estes problemas por si sós; não podem resolver o problema religioso
por si só, nem o problema econômico nem o problema social, a menos que vejam a
inter-relação entre os problemas religiosos, sociais e econômicos.
Aquilo a que chamamos problemas são meramente
sintomas, que aumentam e se multiplicam porque não agarramos a vida toda como
uma coisa só, mas dividimo-la em problemas econômicos, sociais ou religiosos.
Se olharem para todas as variadas soluções que são oferecidas para os vários
padecimentos, verão que lidam com os problemas em separado, em compartimentos
estanques, e não tomam os problemas religiosos, sociais e econômicos
compreensivamente como um todo. Ora é minha intenção mostrar que enquanto
lidarmos com estes problemas em separado apenas aumentamos o desentendimento, e
portanto o conflito, e desse modo o sofrimento e a dor; até que lidemos com o
problema social e com os problemas religiosos e econômicos como um todo
compreensivo, não dividido, mas de preferência vendo a ligação delicada e
subtil entre aquilo que chamamos problemas religiosos, sociais ou econômicos –
até que vejam esta ligação real, esta ligação íntima e subtil entre os três,
seja qual for o problema que possam ter, não o vão resolver. Apenas
incrementarão a luta. Embora possamos pensar que resolvemos um problema, esse
problema surge novamente de uma forma diferente, e assim vamos através da vida
resolvendo problema após problema, luta após luta, sem compreender totalmente o
pleno significado do nosso viver.
Portanto, para compreender esta ligação íntima
entre aquilo a que chamamos problemas religiosos, sociais e econômicos, tem que
haver uma completa reorientação do pensamento – isto é, cada indivíduo tem que
deixar de ser uma peça de engrenagem, uma máquina, seja na estrutura social
seja na religiosa. Olhem e verão que a maior parte dos seres humanos são
escravos, meras peças de engrenagem nesta máquina. Não são realmente seres
humanos, apenas reagem a um meio estabelecido e por isso não existe verdadeira
ação individual, pensamento individual; e para descobrir essa relação íntima
entre todas as nossas ações, religiosas, políticas ou sociais, têm que pensar
como indivíduos, não como um grupo, não como um corpo coletivo; e essa é uma
das coisas mais difíceis de fazer, que os indivíduos saiam da sua estrutura
social, ou religiosa, e a examinem com espírito crítico, para descobrir o que é
falso e o que é verdadeiro nessa estrutura. E então verão que já não estão
preocupados com um sintoma, mas estão a tentar descobrir a causa do próprio
problema, e não apenas a lidar com os sintomas.
Talvez alguns de vocês digam no fim da minha
palestra que nada lhes dei de positivo, nada em que possam claramente
trabalhar, um sistema que possam seguir. Eu não tenho nenhum sistema. Penso que
os sistemas são perniciosos, porque podem de momento aliviar os problemas, mas
se simplesmente seguirem um sistema são escravos dele. Apenas substituem o
velho sistema por um novo, o que não origina compreensão. O que origina
compreensão não é procurar um novo sistema, mas sim descobrirem por si
próprios, como indivíduos, não como uma máquina coletiva mas como indivíduos, o
que é falso e o que é verdadeiro no sistema existente, e não substituir o velho
sistema por um novo.
Ora, ser capaz de criticar, ser capaz de
questionar, é o primeiro requisito essencial para qualquer homem pensante, para
que possa começar a descobrir o que é falso e o que é verdadeiro no sistema
existente, e por esse motivo nesse pensamento há ação, e não mera aceitação.
Assim durante esta palestra, se quiserem compreender o que vou dizer, tem que
haver espírito crítico. O espírito crítico é essencial. O questionamento é
correto, mas nós fomos treinados para não questionar, para não criticar, fomos
cuidadosamente treinados para nos opormos. Por exemplo, se eu disser algo que
não vão gostar – como o farei, espero – naturalmente começarão a opor-se,
porque a oposição é mais fácil do que descobrir se o que digo tem algum valor.
Se descobrirem que o que eu digo tem valor, então há ação, e por isso terão que
alterar toda a vossa atitude perante a vida. Por esse motivo, como não estamos
preparados para fazer isso, criámos uma hábil técnica de oposição. Isto é, se
não gostarem de qualquer coisa que estou a dizer, apresentam todos os vossos
preconceitos profundamente enraizados e obstruem-na, e se eu estiver a dizer
algo que os possa magoar, ou que os possa aborrecer emocionalmente, refugiam-se
nestes preconceitos, nestas tradições, neste pano de fundo; e reagem a partir
desse pano de fundo, e a essa reação chamam crítica. Para mim não é espírito
crítico. É apenas oposição habilidosa, que não tem valor.
Ora bem, se forem todos Cristãos – e
presumivelmente são todos Cristãos – talvez eu vá dizer algo que podem não
compreender, e em vez de tentarem descobrir o que quero transmitir,
imediatamente se refugiarão por trás das tradições, por trás dos preconceitos
profundamente enraizados e das autoridades da ordem estabelecida, e a partir
dessa fortaleza, na defensiva, atacarão. Para mim isso não é crítica: isso é
uma maneira engenhosa de não atuar, de evitar a ação plena, completa.
Se quiserem entender o que vou dizer, pedia-lhes
que fossem realmente críticos, não habilidosos na vossa oposição. Ser crítico
requer muita inteligência. A crítica não é cepticismo, ou aceitação; isso seria
igualmente estúpido. Se simplesmente dissessem, “Bem, eu sou céptico sobre o
que diz”, isso seria tão estúpido como simplesmente aceitar. Ao passo que a
verdadeira crítica consiste, não em transmitir valores, mas em tentar descobrir
os verdadeiros valores. Não é assim? Se conferirem valores às coisas, se a
mente conferir valores, então não estão a descobrir o mérito intrínseco da
coisa, e a maior parte das nossas mentes está treinada para conferir valores. O
dinheiro, por exemplo. Abstratamente o dinheiro não tem valor. Tem o valor que
lhe damos. Isto é, se quiserem o poder que o dinheiro dá, então usam o dinheiro
para ter poder, portanto estão a dar um valor a algo que inerentemente não tem
valor; assim, da mesma maneira, se descobrirem e compreenderem o que vou dizer,
têm que ter esta capacidade de crítica, que é realmente fácil se quiserem
descobrir, se quiserem encontrar, não se disserem, “Bem, não quero ser atacado.
Estou na defensiva. Tenho tudo o que quero, estou perfeitamente satisfeito. ”
Então, uma tal atitude é perfeitamente irremediável. Estão então aqui apenas
por curiosidade – e a maioria provavelmente está – e o que eu vou dizer não
terá significado, e por isso dirão que é negativo, nada construtivo, nada
positivo.
Portanto por favor lembrem-se que esta tarde vamos
descobrir, considerar em conjunto, quais são as coisas falsas e as verdadeiras
na situação social e religiosa existente; e para fazer isso por favor não
tragam continuamente os vossos preconceitos, sejam Cristãos, ou de qualquer
outra seita, mas tenham antes esta atitude inteligente e crítica, não só a
respeito do que vou dizer, mas com respeito a tudo na vida, o que significa a
cessação da procura de novos sistemas, e não a procura de um novo sistema que,
quando encontrado, será de novo pervertido, corrompido. Na descoberta do falso
e do verdadeiro nos sistemas social, religioso e econômico – o falso e o
verdadeiro que nós próprios criamos – nessa descoberta, impediremos as nossas
mentes e corações de criar falsos ambientes nos quais provavelmente a mente
será de novo aprisionada.
A maior parte de vocês está à procura de um novo
sistema de pensamento, um novo sistema de economia, um novo sistema de
filosofia religiosa. Porque procuram um novo sistema? Vocês dizem, “Estou
insatisfeito com o antigo”, isto é, se estiverem a procurar. Ora eu digo, não
procurem um novo sistema, mas em vez disso examinem o próprio sistema em que
estão presos, e então verão que nenhum sistema de nenhuma espécie originará a
inteligência criativa que é essencial para a compreensão da verdade ou Deus ou
seja lá qual for o nome que gostam de lhe dar. Isso significa que não seguindo
qualquer sistema vão descobrir a realidade eterna; mas só a vão encontrar
quando vocês, como indivíduos, começarem a compreender o próprio sistema que
edificaram através dos séculos, e nesse sistema descobrirem o que é verdadeiro
e o que é falso.
Portanto por favor lembrem-se disso – que não lhes
estou a dar um novo sistema de filosofia. Penso que estes sistemas são gaiolas
para manter presa a mente. Não ajudam o homem, são apenas impedimentos. Estes
sistemas são um meio de exploração. Ao passo que se vocês, como indivíduos,
começarem a questionar, verão que nesse questionamento criam conflito, e a
partir desse conflito compreenderão – não na mera aceitação de um novo sistema
que é apenas outro soporífero que os adormece e os transforma em mais uma
máquina.
Vamos portanto desocbrir o falso e o verdadeiro nos
sistemas existentes – os sistemas da religião e da sociologia. Para descobrir o
que é falso e o que é verdadeiro, temos de ver em que se baseiam as religiões.
Ora, eu falo de religião como a forma cristalizada de pensamento que se tornou
no mais elevado ideal da comunidade. Espero que acompanhem tudo isto. Isto é,
as religiões tal como são, não como vocês gostariam que fossem. Tal como são,
em que se baseiam? Qual é o seu fundamento? Quando olham, quando examinam e
pensam realmente com espírito crítico sobre isso – não trazendo as vossas
esperanças e preconceitos, mas quando realmente pensam sobre isso – verão que
se baseiam no conforto, dando-lhes consolo quando estão a sofrer. Isto é, a
mente humana está continuamente à procura de segurança, de uma posição de
certeza, seja numa crença ou num ideal ou num conceito, e portanto estão
continuamente a procurar uma certeza, uma segurança, em que a mente se refugie
como conforto. Ora o que acontece quando estão continuamente à procura de
segurança, proteção, certeza? Naturalmente isso gera medo, e quando há medo tem
que haver conformidade. Por favor, não tenho tempo de entrar em detalhes.
Fá-lo-ei nas minhas várias palestras, mas nesta quero pôr tudo concisamente, e
se estiverem interessados podem ponderar sobre isto, e depois podemos
discuti-lo em reuniões de perguntas e respostas.
Portanto as pretensas religiões conferem o padrão
de conformidade à mente que procura segurança nascida do medo na busca de
conforto; e onde há procura de conforto, não há compreensão. As nossas
religiões em todo o mundo, no seu desejo de dar conforto, no seu desejo de os
conduzir a um padrão específico, de os moldar, dá-lhes vários padrões, moldes,
seguranças, através daquilo a que chamam fé. Essa é uma das coisas que exigem –
fé. Por favor não interpretem mal. Não se adiantem a mim. Elas exigem fé, e vocês
aceitam a fé porque ela lhes proporciona um refúgio do conflito da existência
diária, da luta contínua, das preocupações, dores e sofrimentos. Portanto dessa
fé, que tem que ser uma fé dogmática, nascem as igrejas, e daí são
estabelecidas ideias, crenças.
Ora para mim – e por favor lembrem-se disto, quero
que critiquem, não que aceitem – para mim todas as crenças, todos os ideais são
um obstáculo porque os impedem de compreender o presente. Vocês dizem que as
crenças, os ideais, a fé, são necessários como um farol que os orientará
através da confusão da vida. Isto é, estão mais interessados em crenças, em
tradição, em ideais e na fé, do que em compreender a própria confusão. Para
compreenderem a confusão não podem ter uma crença, um preconceito; têm que olhar
para ela completamente, agarrá-la com uma mente clara, com uma mente não
corrompida, não com uma mente que está influenciada por preconceitos
específicos a que chamamos um ideal. Portanto onde há uma procura de conforto,
de segurança, tem que haver um padrão, um molde, no qual nos refugiamos, e por
isso a preconceber o que deve ser Deus, e o que deve ser a verdade.
Ora para mim, existe uma realidade viva. Existe
algo que devém eternamente, algo fundamental, real, duradouro, mas que não pode
ser preconcebido; não requer crenças, requer uma mente que não esteja
acorrentada a um ideal tal como um animal está atado a um poste, mas que pelo
contrário, requer uma mente que esteja continuamente a mover-se, a
experimentar, nunca permanecendo. Eu afirmo que há uma realidade viva;
chamem-lhe Deus, verdade, o que quiserem, coisa que é de muito pouca
importância – e para compreenderem isso, é preciso haver suprema inteligência,
e por isso não pode haver qualquer conformidade, mas antes o questionamento
dessas coisas falsas e verdadeiras em que a mente se encontra aprisionada. E
verão que a maior parte das pessoas, a maior parte de vocês são religiosamente
propensos, estão à procura da verdade, e essa mesma procura indica que estão a
fugir do conflito do presente, ou que estão insatisfeitos com a situação
presente. Por isso tentam descobrir o que é real; isto é, deixam a situação que
cria conflito e fogem e tentam descobrir o que é Deus, o que é a verdade. Por
isso essa procura é a negação da verdade, porque estão a fugir – há evasão,
desejo de conforto, de segurança. Por isso, quando as religiões se baseiam,
como o fazem, na oferta de seguranças, tem que haver exploração; e para mim as
religiões tal como são subsistem em nada mais do que numa séria de explorações.
Aquilo a que chamamos os mediadores entre o nosso presente conflito e essa
suposta realidade tornaram-se os nossos exploradores, e eles são os sacerdotes,
os mestres, os professores, os salvadores; porque eu afirmo que só através da
compreensão do conflito presente com todo o seu significado, com todos os seus
delicados matizes – só assim podem descobrir o que é real, e ninguém os pode
conduzir a isso.
Se ambos, o inquiridor e o professor, soubessem o
que é a verdade, então ambos poderiam ir na sua direção; mas o discípulo não
pode saber o que é a verdade. Por isso a sua inquirição sobre a verdade só pode
existir no conflito, não longe dele, e assim, para mim, qualquer professor que
descreva o que é a verdade, o que é Deus, está a negar isso mesmo, esse algo incomensurável
que não pode ser medido por palavras. A ilusão das palavras não lhes dá
segurança, e a ponte das palavras não os pode conduzir a esse algo. É somente
quando vocês, como indivíduos, se começarem a aperceber no conflito imenso, da
causa, e por consequência da falsidade desse conflito, que descobrirão o que é
a verdade. Ali existe a felicidade eterna, a inteligência; mas não nesta coisa
espúria chamada espiritualidade que é apenas uma conformidade, conduzida pela
autoridade através do medo. Eu afirmo que existe algo extremamente real,
infinito; mas para o descobrir o homem não deve ser uma máquina imitativa, e as
nossas religiões não são nada mais que isso. E além disso, as nossas religiões
em todo o mundo mantêm as pessoas separadas. Isto é, vocês com os vossos
preconceitos específicos, autodenominando-se Cristãos, e os Indianos com as
suas crenças específicas, autodenominando-se Hindus, nunca se encontram. As
vossas crenças mantêm-nos separados. As vossas religiões estão a mantê-los
separados. “Mas”, dizem vocês, “se os Hindus pudessem ao menos tornar-se
Cristãos, então haveria uma unidade”, ou os Hindus dizem, “Deixemos que se
tornem todos Hindus.” Mesmo então há divisão, porque a crença necessita de uma
divisão, uma distinção, e por esse motivo a exploração e a luta contínua da
diferença de classes.
Dizemos que as religiões unem. Pelo contrário.
Olhem para o mundo fraccionado em seitas pequenas e tacanhas, lutando umas
contra as outras para aumentar o seu número de membros, a sua riqueza, as suas
posições, as suas autoridades, pensando que elas são a verdade. Só há uma
verdade, mas não podem chegar a ela através de nenhuma seita, através de
nenhuma religião. Para descobrir o que é verdade na religião, e o que é falso,
não podem ser uma máquina; não podem aceitar as coisas como elas são. Fá-lo-ão
se estiverem satisfeitos, e se estão satisfeitos não me ouvirão, e a minha
palestra será inútil. Mas se estão insatisfeitos ajudá-los-ei a questionar
corretamente, e desse questionamento descobrirão o que é a verdade, e nessa
descoberta do que é verdadeiro descobrirão como viver amplamente,
completamente, extaticamente; não com esta constante luta, batalhando contra
tudo para vossa própria segurança, à qual chamam virtude.
Mais uma vez, este medo que é criado através da
procura de segurança, procura refúgio na sociedade. A sociedade nada mais é que
a expressão do individual multiplicada por milhares. Afinal, a sociedade não é
uma coisa misteriosa. É o que vocês são. É premente, controladora, dominadora,
tortuosa. A sociedade é a expressão do indivíduo. Esta sociedade oferece
segurança através da tradição, a que chamamos opinião pública. Isto é, a
opinião pública diz que possuir, possuir bens, é perfeitamente ético, moral, e
dá-lhes distinção neste mundo, confere-lhes honras; vocês são pessoas notáveis
neste mundo. É isso que, tradicionalmente, é aceito. É essa a opinião que
criaram como indivíduos, porque é isso que vocês procuram. Todos vocês querem
ser alguém no estado, seja Sir Qualquer Coisa ou Lord, e todo o resto, como
vocês sabem, que se baseia na possessividade, nas posses; e isso tornou-se
moral, verdadeiro, bom, perfeitamente cristão, ou perfeitamente hindu. É a
mesma coisa. Ora nós chamamos a isso moralidade. Chamamos moralidade ao
ajustamento a um padrão. Por favor, não estou a pregar o contrário disso. Estou
a mostrar-lhes a falsidade disso, e se quiserem descobrir atuarão, não
procurarão o reverso. Isto é, vocês consideram as posses, já sejam a vossa
mulher, os vossos filhos, os vossos bens, vocês consideram isso perfeitamente
moral. Agora suponham que tinha nascido uma outra sociedade em que as posses
fossem más, onde esta ideia de possessividade fosse eticamente proibida – que
entrasse na vossa mentalidade como a possessividade entra agora pelas circunstâncias,
pela situação, pela opinião. Então a moralidade perde todo o seu significado, a
moralidade é então uma mera conveniência. Não a percepção correta das coisas,
mas o engenhoso ajuste às circunstâncias – a que chamam moralidade. Suponham
que querem, como indivíduos, não ser possessivos, vejam o que têm que combater!
Todo o sistema da sociedade não é senão possessividade. Se o compreendessem e
não fossem levados pelas circunstâncias que não são chamadas morais, então
vocês, como indivíduos, teriam que começar a afastar-se desse sistema
voluntariamente, e não teriam que ser levados como cordeiros a aceitar a
moralidade da não-possessividade.
Atualmente são forçados quer gostem quer não, quer
pensem que é sensato ou não; são forçados pelas situações, pelo meio que
criaram, porque são ainda possessivos, e agora talvez apareça um outro sistema
que os leve ao oposto – a ser não-possessivos. Certamente não é moralidade; é
apenas timidez ser forçado pelo meio a ser possessivo ou não-possessivo. Ao passo
que, para mim, a verdadeira moralidade consiste em compreender totalmente o
absurdo da possessividade e combatê-la voluntariamente; e não ser conduzido de
uma maneira ou de outra.
Agora, se olharem, esta sociedade está baseada na
consciência de classes que é mais uma vez a consciência da segurança. Da mesma
maneira que as crenças se tornam em religiões, também as posses se tornam na
expressão da nacionalidade. Da mesma maneira que as crenças separam as pessoas,
condicionam as pessoas, mantêm-nas separadas, também a possessividade,
expressando-se como consciência de classes e tornando-se em nacionalidade,
mantém as pessoas separadas. Isto é, toda a nacionalidade se baseia na
exploração da maioria pela minoria para seu próprio benefício através dos meios
de produção. Essa nacionalidade, através do instrumento do patriotismo, é um
processo de guerra. Todas as nacionalidades, todos os países soberanos, têm que
se preparar para a guerra; é o seu dever, e não adianta serem pacifistas e ao
mesmo tempo falar de patriotismo. Não podem falar de fraternidade, e depois
falar sobre Cristianismo, porque isso nega-a; não mais aqui que na Índia, ou em
qualquer outro país. Na Índia podem falar sobre Hinduísmo e dizer que somos um
só, que toda a humanidade é uma só. São apenas palavras – hipocrisia.
Portanto todas as nacionalidades são um processo de
guerra. Quando falava na Índia, disseram-me (presentemente os Hindus estão a
travessar uma fase dessa doença do nacionalismo), “Olhemos primeiro pelo nosso
país porque há tanta gente a morrer de fome; depois podemos falar sobre a
unidade da humanidade”, que é a mesma coisa de que falam aqui. “Protejamo-nos e
depois falaremos sobre unidade, fraternidade, e todo o resto.” Ora, se a Índia
está realmente preocupada com o problema da fome, ou se vocês estão realmente
preocupados com o problema do desemprego, não podem lidar apenas com o problema
de desemprego da Nova Zelândia; é um problema humano, não um problema de um
grupo específico chamado Nova Zelândia. Não podem resolver o problema da fome
como um problema Indiano, ou como um problema Chinês, ou o problema do
desemprego como um problema Inglês, ou Alemão, ou Americano, ou Australiano,
mas têm que lidar como ele como um todo; e só podem lidar com ele como um todo
quando não forem nacionalistas, e não forem explorados através do processo de
patriotismo. Vocês não são patriotas todas as manhãs quando acordam. Só são
patriotas quando os papéis dizem que têm que o ser, porque têm que conquistar o
vosso próximo. Somos por isso bárbaros, e não os que invadem o vosso país. O
bárbaro é o patriota. Para ele o seu país é mais importante que a humanidade,
que o homem; e eu digo-vos que não resolverão os vossos problemas, este
problema econômico e de nacionalidade, enquanto forem Novo Zelandeses. Só o
resolverão quando forem seres humanos verdadeiros, livres dos preconceitos
nacionalistas, quando deixarem de ser possessivos, e quando a vossa mente não
estiver dividida pelas crenças. Então poderá haver verdadeira unidade humana, e
então o problema da fome, o problema do desemprego, o problema da guerra,
desaparecerá, porque vocês considerarão a humanidade como um todo e não como
algum povo específico que quer explorar outro povo.
Veem portanto o que está a dividir o homem, o que
está a destruir a verdadeira glória de viver na qual, unicamente, podem
encontrar essa realidade viva, essa imortalidade, esse êxtase; mas para a
encontrar têm que ser em primeiro lugar indivíduos. Isso significa que têm que
começar a compreender, e por consequência a agir, para descobrir o que é falso
no sistema existente, e assim, como indivíduos, formarão um núcleo. Não podem
alterar as massas. O que são as massas? Vocês próprios multiplicados. Esperam
que as massas atuem, esperando que por algum milagre haja uma mudança completa
do dia para a noite, porque não pensam, não querem agir. Enquanto esta atitude
de espera existir, haverá cada vez maior luta, cada vez mais sofrimento, falta
de compreensão; a vida torna-se uma tragédia, algo sem valor. Ao passo que, se
vocês, como indivíduos, agirem voluntariamente porque querem compreender e
descobrir, então tornar-se-ão responsáveis, então não se tornarão reformadores,
então haverá uma mudança completa, não baseada na possessividade, nas
distinções, mas na verdadeira humanidade na qual há afeto, há pensamento, e por
isso um êxtase de viver.
Jiddu Krishnamurti, O que é a Acção Correcta?
Filosofia. Textos de J.Krishnamurti em Português.
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