Por Teilhard de Chardin
No decorrer dos longos desenvolvimentos precedentes, uma particularidade terá talvez intrigado ou até mesmo escandalizado o leitor. Em nenhum lugar, se não me engano, a palavra dor, ou a palavra culpa, foi pronunciada. Do ponto de vista em que me coloquei, o Mal e o seu problema se esvaneceriam ou não contariam mais, portanto, na estrutura do Mundo? E nesse caso, o Universo que foi aqui apresentado não é um quadro simplificado ou mesmo truncado?
A essa crítica, muitas vezes ouvida, de otimismo ingênuo ou exagerado, minha resposta (ou, se quiserem, minha desculpa) é que, apegado, nesta obra, unicamente ao propósito de realçar a essência positiva do processo biológico de hominização, não julguei necessário (por motivo de clareza e de simplicidade) compor o negativo da imagem que eu projetava. De que serve chamar a atenção para as sombras da paisagem, ou insistir sobre a profundeza dos abismos, abertos entre os cimos? Mas o que eu não disse supus que se via. Por conseguinte, procurar na visão aqui proposta uma espécie de idílio humano em lugar e ao invés do drama cósmico que eu pretendi evocar, seria nada haver compreendido dela.
Objetam que o Mal não é, por assim dizer, mencionado em meu livro. Explicitamente, talvez. Mas em contrapartida, esse mesmo Mal não mina exatamente, invencível e multiforme, por todos os poros, por todas as juntas, por todas as articulações do sistema em que me coloquei?
Mal de desordem e de insucesso, para começar. Até e suas zonas reflexivas, como vimos, o Mundo procede a golpes de acaso e tateio. Ora só por essa força, até no domínio humano (aquele, contudo, em que o acaso é mais controlado), quantos fracassos para um sucesso, quantas desgraças para uma só felicidade, quantos pecados para um único santo!... Simples não-arranjo ou desarranjo físico, de início, ao nível da Matéria; mas logo sofrimento incrustado na Carne sensível; e mais acima ainda, maldade ou tortura do Espírito que se analisa e escolhe; estatisticamente, em todos os graus da Evolução, sempre e em toda a parte, é o Mal que se forma e se reforma, implacavelmente, em nós e à nossa volta! “Necessarium est ut scandala eveniant” (É necessário que venham os escândalos). Assim o exige, sem apelação possível, o jogo dos grandes números no seio de um Multitudinário em via de organização.
Mal de decomposição, em seguida: simples forma do precedente, no sentido de que doença e corrupção resultam sempre de algum acaso infeliz; mas, forma agravada e duplamente fatal, é preciso acrescentar, na medida em que, para o ser vivo, morrer tornou-se a condição regular, indispensável, da substituição dos indivíduos uns pelos outros ao longo de um mesmo filo: a morte, engrenagem essencial do mecanismo e da ascensão da Vida.
Mal de solidão e de angústia, ainda: a grande ansiedade (esta bem própria do Homem) de uma consciência que desperta para a reflexão num Universo obscuro, onde a luz leva séculos e séculos para chegar até ela, - um Universo que não conseguimos ainda compreender bem, nem saber o que é que espera de nós...
E finalmente, o menos trágico talvez (porque nos exalta), mas não o menos real: Mal de crescimento, pelo qual se exprime em nós, nos transes de um parto, a lei misteriosa que, do mais modesto quimismo às mais elevadas sínteses do espírito, obriga a traduzir-se em termos de trabalho e esforço todo progresso que vá em direção à maior unidade.
Na verdade, se observarmos o avanço do Mundo, assim de viés, não na linha de seus progressos, mas na de seus riscos e do esforço que ele requer, perceberemos logo que, por sob o véu de segurança e harmonia, de que se reveste a Ascensão humana vista bem do alto, descobre-se um tipo particular de Cosmo do onde (não absolutamente por acidente – o que seria pouco – mas pela própria estrutura sistema) o Mal surge necessariamente, e em quantidade ou gravidade tão grandes quanto se quiser, na esteira da Evolução. Universo que se enrola – dizia eu, - Universo que se interioriza; mas também, no mesmo passo, Universo que moureja, Universo que peca, Universo que sofre... Arranjo e centração; lágrimas e sangue: outros tantos subprodutos (muitas vezes preciosos e reutilizáveis) que a Noogênese engendra pelo caminho. Eis, portanto, afinal de contas, o que nos revela, num primeiro tempo de observação e de reflexão, o espetáculo do Mundo em movimento. Mas isso é mesmo tudo? – E não há mais nada para se ver? Quer dizer, será verdadeiramente certo que, para um olhar atento e sensibilizado por uma outra luz que não a da pura ciência, a quantidade e a maldade do Mal ‘hic e nunc’ (aqui e agora) espalhado pelo Mundo não trai um certo excesso, inexplicável para a nossa razão se esse efeito normal de Evolução não se acrescentar ainda por cima o efeito extraordinário de alguma catástrofe ou desvio fundamental?...
Nesse campo, não me sinto sinceramente à altura de tomar posição e, de resto, nem caberia toma-la aqui. Uma coisa, aconselhada aos espíritos: observar que nesse caso (...) o Fenômeno não só deixa, mas oferece à Teologia toda a liberdade de precisar e de completar em profundidade (se a tal ela se julgar obrigada) os dados ou sugestões – sempre ambíguos para além de certo ponto – fornecidos pela experiência.
De qualquer modo, resta que, mesmo aos olhos do simples biólogo, nada se assemelha tanto a um Calvário quanto a epopéia humana.
(Apêndice de O FENÔMENO HUMANO - Pierre Teilhard de Chardin, 1948)