P R E F Á C I O
Em junho de 1961 Krishnamurti começou a fazer um registro diário de suas percepções e estados de consciência. Manteve essas anotações durante sete meses. Escrevia a lápis, de modo claro e virtualmente sem rasuras. Nas primeiras setenta e sete páginas do manuscrito usou um caderninho de notas: daí em diante, até o final (página 323), valia-se de um caderno maior de folhas soltas. O registro começa repentinamente e repentinamente termina. O próprio Krishnamurti não sabe dizer o que o levou a efetuá-lo. Anteriormente, não fizera coisa igual, nem tampouco a repetiu depois.
O manuscrito sofreu retoques mínimos. Retificou-se a grafia e a pontuação, com vistas a maior clareza; algumas abreviaturas, como a que ele usa invariavelmente, foram substituídas pelas palavras correspondentes; colocaram-se notas de rodapé e umas poucas interpolações, estas últimas entre chaves. Nos demais aspectos, o manuscrito é apresentado tal como foi concebido.
Uma palavra se torna necessária para explicar um dos termos nele empregados — “o processo”. Em 1922, aos vinte e oito anos de idade, Krishnamurti passou por uma experiência espiritual que mudou a sua vida, e a que se seguiram anos de aguda e quase contínua dor de cabeça e na espinha. Revela o manuscrito que “o processo”, — como ele denominava essa misteriosa dor — ainda prosseguira quase quarenta anos depois, embora de forma bem atenuada.”
0 processo” era um fenômeno físico, que não se deve confundir com o estado de consciência a que Krishnamurti alude de várias maneiras nos cadernos, como a “bênção”, a “outra coisa”, “outra presença”, “a imensidão”, “aquela coisa singular”, “o incognoscívei”, etc. Em tempo algum tomou remédios para “o processo”. Jamais se utilizou de álcool ou de qualquer espécie de droga. Nunca fumou e durante os últimos trinta anos, aproximadamente, nem mesmo tomou chá ou café. A vida toda vegetariano, esforçou-se continuamente por conseguir uma dieta farta e bem equilibrada. No seu modo de ver, o ascetismo, na vida religiosa, é tão destrutivo quanto os excessos. Com efeito, ele cuida do “corpo” (Krishnamurti sempre estabeleceu uma separação entre o corpo e o ego), tal como um oficial de cavalaria cuidaria de seu cavalo. Nunca sofreu de epilepsia ou de qualquer outro mal que pudesse suscitar visões ou fenômenos idênticos; tampouco pratica algum “sistema” de meditação. Estas afirmativas objetivam evitar a suposição de que os estados de consciência de Krishnamurti são ou foram provocados por drogas ou jejuns.
Neste singular “diário” temos o que se poderia denominar o manancial do ensino de Krishnamurti. Toda a sua essência aqui está, brotando de sua fonte nativa. Assim como consta destas páginas, que “cada vez existe nesta bênção algo de novo”, uma qualidade “nova”, um “novo” perfume, — mas que, no entanto, é imutável, assim também o ensinamento que daí emana nunca é exatamente o mesmo, embora muitas vezes repetido. Semelhantemente, árvores, montanhas, rios, nuvens, luz do sol, pássaros e flores, por ele várias vezes descritos, são sempre coisas “novas”, porque vistas cada vez com olhos límpidos; cada dia elas são para ele percepções inteiramente novas, e deste modo as vemos nós também.
A 18 de junho de 1961, data em que Krishnamurti iniciou estas anotações, ele se achava em Nova Iorque, hospedado com amigos em West 87th Street. Para lá fora a 14 de junho, ao sair de Londres, onde durante seis semanas proferiu doze palestras. Antes de ir para Londres, esteve em Roma e Florença, e, anteriormente, durante os três primeiros meses do ano, na índia, falando em Nova Deli e Bombaim.
Mary Lutyens
[...]
18 de junho (Nova Iorque, 1961)
Anoitecia; de repente, inundando o quarto, sentia-se uma grande manifestação de beleza, suavidade. Outros também o notaram.
19 de junho
E durante a noite, ao acordarmos,* o sentimento continuava. A cabeça doía quando estávamos a caminho para tomar o avião, e em voo para Los Angeles. A purificação do cérebro é necessária. O cérebro é o centro de todos os sentidos; quanto mais afinados e atentos estiverem os sentidos, tanto mais vigilante estará o cérebro; ele é o centro da memória, o passado; é o depósito da experiência e do conhecimento, da tradição. Portanto, é limitado, condicionado. Suas atividades são planejadas, refletidas, raciocinadas, mas por funcionar dentro de limites, no tempo espaço, não pode ele formular nem entender o que é integral, o todo, o absoluto. O absoluto, a totalidade é a mente; ela se acha vazia, e por causa deste vazio, o cérebro existe no tempo e no espaço. Ao purificar-se o cérebro do seu condicionamento, da avidez, da inveja, da ambição, poderá ele, então, compreender o que é integral. O amor é essa integridade.
20 de junho
No carro, a caminho de Ojai,** começou de novo a pressão e o sentimento de imensa vastidão. Não é que experimentássemos aquela vastidão; ela estava simplesmente ali; não havia centro em que a experiência ocorresse, ou do qual ela surgisse. Os carros, as pessoas, os cartazes, tudo aparecia com surpreendente nitidez e a cor era dolorosamente intensa. A “coisa” durou mais de uma hora, e a cabeça continuava a doer muito.O cérebro pode e deve desenvolver-se; esse desenvolvimento decorrerá sempre de uma causa, de uma reação, da violência para a não violência, e assim por diante. 0 cérebro deixou de ser primitivo, mas, ainda que refinado, inteligente, ou técnico, permanecerá sempre dentro dos limites do tempo e do espaço.Ser anônimo é ser humilde; não consiste isso na mudança de nome, ou de vestuário, nem na identificação com o que pode ser anônimo, com um ideal, um ato heroico, a pátria, etc. Esse anonimato o cérebro criou, é um anonimato consciente; existe, porém, o anonimato que surge com a percepção do absoluto. O absoluto nunca se encontra na área do cérebro ou da ideia. [...]
* Primeira pessoa do plural em lugar da primeira do singular. Sempre que Krishnamurti se refere a si mesmo utiliza a forma “nós”. (N.T.)
**Vale de Ojai, situado a 80 milhas ao Norte de Los Angeles.
(Diário de Krishnamurti - Editora - Cultrix - Págs - 5 - 6 - 9)