O leitor que nos seguiu até aqui, já deve ter
percebido que existem três classes de homens, no que tange a sua evolução
interna: os profanos, os iniciandos e os iniciados. Sendo que os do segundo grupo se acham entre os do
primeiro e do último, resolvemos chamar-lhes “iniciandos”, quer dizer, seres em
vias de iniciação, ou iniciáveis. Não quer isto dizer que, de fato, venham a
ser iniciados, uma vez que, em qualquer ponto intermediário da longa jornada entre
a completa profanidade e a definitiva iniciação, existe a possibilidade do
regresso, da apostasia, da decaída.
De acordo com esses três estágios evolutivos,
distinguem-se entre os homens três tipos de caráter, que resolvemos qualificar
simbolicamente como homens 1) de caráter-argila, 2) de caráter-cristal
3) e de caráter- aço.
1 – Caracteres-argila
Que forma tem a argila? o barro mole? Nenhuma. É
essencialmente amorfa, mas suscetível de qualquer forma que se lhe queira
imprimir. Sendo que a argila não possui, em virtude da sua natureza, forma
alguma própria, intrínseca, aceita toda e qualquer forma alheia, extrínseca –
perdendo-a também com a mesma facilidade.
O homem profano é exatamente como a argila amorfa e
formável. Não tem forma específica, não possui caráter certo, mas é amoldável a
todas as ambiências. O homem profano não possui centro próprio, e, por isto
mesmo, não pode guardar fidelidade a si mesmo, porque não possui um “Eu
central” que lhe possa servir de eixo, foco ou, centro de gravitação. Falta-lhe
aquilo que se chama “personalidade”. Ele não é propriamente uma pessoa, é
apenas um indivíduo. É, a bem dizer, um “ninguém”, e é por isto mesmo que pode
vir a ser tudo. O homem de caráter-argila vive em permanente adultério ou
divórcio consigo mesmo – ou melhor, é vítima de uma constante e ilimitada
“prostituição espiritual”. Qualquer aragem de opinião pública dá com ele em
terra. Abandona hoje o que ontem abraçou, e vai apostatar amanhã daquilo que
hoje adora. Anda sempre disperso e derramado pelo mundo inteiro, mas nunca está
“em casa” concentrado dentro do próprio Eu – também, como podia esse homem
estar com seu Eu, se esse Eu não existe propriamente? O homem profano não é, de
fato, uma pessoa, mas antes uma coisa, ou até muitas coisas ligeiramente
conexas. Pratica um esporte sui generis:
aplaude de manhã as idéias de um orador ou escritor, para trocá-Ias ao meio-dia
por uma ideologia oposta, a qual à noite vai ser sacrificada por uma mensagem
diferente. Como as primitivas amebas, sabe ele assumir todas as formas
imagináveis. Como o interessante camaleão, absorve rapidamente as cores do
ambiente. O homemargila é antes um processo transitório do que uma substância
permanente.
Esse homem é a mais infeliz das criaturas,
objetivamente considerado, e tanto mais infeliz quanto mais ele ignora essa sua
enorme infelicidade, porque é incapaz de enxergar o abismo da sua miséria. Não
é ainda um ser humano especificamente definido, é antes matéria-prima para
algum homem possível, espécie de embrião ou feto em vias de evolução, recebendo
todos os elementos plásticos do seio materno através do cordão umbilical. É vivido
pelo organismo da mãe, não vive propriamente vida individual.
O mundo de hoje está repleto de homens “nascituros”
desse gênero, homens sem personalidade própria, sem a menor independência de
espírito, homens que pensam pela cabeça dos outros, pelas colunas dos jornais,
pelas ondas do rádio, pelos boatos das esquinas, pelo estado fortuito dos seus
nervos, pelas secreções endócrinas de certas glândulas, pelo conteúdo
momentâneo do estômago, pelas oscilações do termômetro e do barômetro, etc. E,
mesmo que pensem por vezes, muito antes de começarem a pensar, já sabem
perfeitamente o que deve ser pensado naquelas 24 horas...
Esses homens pertencem, propriamente, como
dizíamos, à classe dos moluscos, ou moluscóides ou – outros invertebrados
primitivos...
2 – Caracteres-cristal
Horrorizado do amorfismo dos homens-argila,
procuram outros criar dentro de si um caráter rigorosamente definido, acabando
por cristalizar o seu Eu numa forma estritamente determinada, com faces e
arestas precisas e inconfundíveis. São, de fato, como cristais, cujas facetas e
arestas não podem ser modificadas sem quebrar o cristal todo.
Esses homens têm “personalidade”, possuem um “Eu”
certo, giram em torno dum eixo nitidamente conhecido, e não se desviam, em
hipótese alguma, dessa trajetória de precisão matemática. Ao invés dos
homens-argila, que só conhecem fins, esses homens-cristal têm princípios,
normas certas e definidas, e são capazes de sacrificar todos os fins do plano
horizontal da vida pela inexorável verticalidade dos seus princípios morais. A
sua vida decorre como que sobre um fio de navalha, retilínea, austera, sem
compromissos, nem vacilações para a direita ou para a esquerda. Nada sabem das
manobras curvilíneas dos penumbristas e moluscos furtacores, dos mercadores de
consciência e dos traficantes de caráter. A vida desses homens de retilínea
austeridade pode parecer amarga e triste aos de fora, e, de fato, ela nada tem
de comum com o dia risonho e ensolarado de milhares de outros; assemelhase
antes a uma noite, uma noite estrelada cheia de trevas, é verdade, mas também
repleta de magia e de encantos ignorados pelos cultores da vida fácil. Para o
verdadeiro homem-cristal, os longínquos mistérios dos astros da meianoite têm
maior fascínio do que, para o homem comum, as coisas propínquas do meio-dia.
Entre os santos, os profetas, os místicos, os
grandes gênios da filosofia e da religião, tem havido muitos desses homens, e,
se houve progresso real na humanidade, é devido, sobretudo, a esses
homens-elite, porque só eles possuem a necessária voltagem para arrancar o
homem-massa da sua inércia rotineira e do seu conformismo inoperante,
lançando-o para dentro do campo magnético de uma vida dinâmica capaz de
transformar a face da terra.
Esses homens, porém, são, por via de regra, vítimas
da sua própria missão, devido, não só à incompreensão e descompreensão das
massas, como também, e antes de tudo, ao próprio caráter da sua grande missão.
São vítimas da sua própria espiritualidade, porque o seu Eu individual, o seu
pequeno Ego humano, é a tal ponto absorvido pelo grande Tu divino, que deles se
serve de instrumentos e canais, que já não podem gozar como o homem comum as
coisas boas e belas da vida cotidiana. Vivem à margem da vida. Trilham veredas
à parte, sendas solitárias, não frequentadas pelos ruidosos turistas da vida
comum... Não conhecem as estradas gerais da turbamulta... São surdos ao ruído
profano dos prazeres... Não se interessam pelo carnavalesco jazz-band
de seus companheiros de outrora... A vida desses homens-cristal está repleta do
silêncio da Divindade, da vasta solidão do Eterno, da luz estelar do Infinito,
do sonoro Saara da oração, das longínquas vias-lácteas duma beatitude inefável
de que os profanos nada suspeitam...
De maneira que a vida do homem-cristal, embora
pareça tenebrosa e triste, é, na realidade, uma vida profundamente bela e
feliz, ainda que a sua beleza e felicidade sejam de uma natureza completamente
diferente daquilo que o analfabeto da espiritualidade entende com estas
palavras. Nem há possibilidade de dar ao profano uma idéia dessa silenciosa
beatitude do iniciando, ou semi-iniciado, como impossível seria explicar a um
cego de nascença o que seja luz ou a um surdo o que seja música. O certo é que
nenhum desses austeros peregrinos da renúncia estaria disposto a trocar a sua
“bela tristeza” pela “horrorosa alegria” dos gozadores superficiais...
3 – Caracteres-aço
Depois da descrição que fizemos do homem-cristal,
nada parece sobrar para uma terceira classe de caracteres. E, no entanto, essa
classe existe, embora sejam relativamente poucos os homens que a ela pertencem,
no presente estágio da nossa evolução. No futuro, porém, é certo, maior número
de homens fará parte desses caracteres.
O maior dentre os filhos dos homens, aquele que
gostava de se apelidar a si mesmo o “filho do homem” – ou seja, a Flor da
Humanidade – não era da primeira nem da segunda classe acima descritas. O
caráter dele era como que de aço de lei, duríssimo e ao mesmo tempo flexível
como uma mola. O homem-argila, embora plasmável, não possui dureza e fidelidade
a si mesmo. O homem-cristal, duríssimo, é destituído de flexibilidade e
adaptabilidade, vivendo em permanente guerra com a sociedade. O homem-aço
possui do cristal a dureza e da argila a plasticidade. Guia-se pela retilínea
inexorabilidade das normas eternas, mas sabe adicionar a essa dura
intransigência a sutil adaptabilidade ao ambiente humano. Nunca e em hipótese
alguma, esse homem sacrifica os seus princípios para alcançar algum fim; não
pactua jamais com o contrário, não aceita compromissos covardes, ignora
ambíguas venalidades e penumbrismos oportunistas, guia-se indeclinavelmente por
um código de moral absoluto e imutável – em tudo isto é ele irmão do
homemcristal – mas, como dizíamos, o homem de caráter-aço possui a soberana
faculdade de se adaptar externamente a todas as conveniências e ambiências
sociais do momento. Ele, sem ser infiel a si mesmo, sabe ser tudo para todos, ignorante
com os ignorantes, sábio com os sábios, criança com as crianças, sabe chorar
com os tristes e rir com os alegres. Não é um estóico insensível às alegrias e
aos sofrimentos da humanidade em derredor; não recusa sentar-se à mesa do
banquete com “publicanos e pecadores”, nem desdenha aceitar as ardentes
homenagens de uma “pecadora pública possessa de sete demônios” que venha
banhar-lhe os pés com as lágrimas dos seus olhos, enxugá-los com a seda macia
da sua cabeleira, cobri-los de beijos e ungi-los com perfumosas essências –
tudo isto pode o homem-aço permitir serenamente, sem prostituir o divino
santuário de sua alma, sem se divorciar dos seus ideais eternos, sem, cometer
adultério contra si mesmo; porque o caráter desse homem é como um raio solar que
penetra nas mais imundas sentinas sem levar daí o mais ligeiro laivo de
impureza ou contaminação; por menos que os fariseus da frígida legalidade
valham compreender tão estranho procedimento.
Ser tudo para todos, sem apostatar de Deus e do seu
próprio Eu espiritual, é tão imensamente difícil e supõe tão completa
maturidade do espírito, que a maior parte dos homens sinceros faz bem em salvar
os seus princípios eternos mesmo sob pena de entrar em conflito com todos e
viver à margem da sociedade. É tarefa sobre-humana ser um santo e querer, ao
mesmo tempo, ser um elegante cavalheiro de salão a divertir uma turbamulta de
profanos e dizer brilhantes vacuidades por espaço de horas a fio, como a
sociedade mundana espera de seus filhos e escravos...
Entretanto, é necessário que o iniciado não procure
acintosamente fazer da sua espiritualidade um tabu, uma torre de marfim
em que se isole hermeticamente contra o mundo profano; é necessário que o homem
espiritual, único elemento de que o mundo pode esperar redenção, não fuja do
mundo e se acastele por detrás das muralhas maciças de uma clausura
impenetrável. Pode a espiritualidade degenerar no pior e mais requintado dos
egoísmos humanos, como acontece todas as vezes que o homem faz de si uma
exceção da regra, um não-me-toque, uma intangível sacralidade, cercando-se,
talvez inconscientemente, de uma atmosfera polar de secreto menosprezo de tudo
e de todos que não pertençam à sua elite. É indizivelmente difícil não
contaminarmos de sutil orgulho a nossa espiritualidade. A mais difícil, como
também a mais bela de todas as coisas belas é uma espiritualidade
espontaneamente humilde e sinceramente natural.
O que a humanidade de hoje necessita mais do que
tudo é de santos da rua, santos da praça pública, santos dos escritórios, das
fábricas, da política – homens que se guiem por um código absoluto de
honestidade, homens que possuam a visão clara do Eterno, a experiência do
Infinito, a permanente comunhão com Deus, e ao mesmo tempo vivam a vida normal
do homem comum, interessando-se vivamente por tudo que pertença à vida humana
normalmente vivida.
São esses homens os verdadeiros arautos do reino de
Deus, os únicos de que a humanidade de amanhã pode esperar dias melhores e mais
felizes.
São eles, esses místicos dinâmicos, os iniciados
perfeitos e integrais.
(Huberto Rohden - Livro : Profanos e Iniciados)