ACERVO VIRTUAL HUBERTO ROHDEN E PIETRO UBALDI

Para os interessados em Filosofia, Ciência, Religião, Espiritismo e afins, o Acervo Virtual Huberto Rohden & Pietro Ubaldi é um blog sem fins lucrativos que disponibiliza uma excelente coletânea de livros, filmes, palestras em áudios e vídeos para o enriquecimento intelectual e moral dos aprendizes sinceros. Todos disponíveis para downloads gratuitos. Cursos, por exemplo, dos professores Huberto Rohden e Pietro Ubaldi estão transcritos para uma melhor absorção de suas exposições filosóficas pois, para todo estudante de boa vontade, são fontes vivas para o esclarecimento e aprofundamento integral. Oásis seguro para uma compreensão universal e imparcial! Não deixe de conhecer, ler, escutar, curtir, e compartilhar conosco suas observações. Bom Estudo!

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quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Caracteres-argila, caracteres-cristal, caracteres-aço

Comentário(s)

O leitor que nos seguiu até aqui, já deve ter percebido que existem três classes de homens, no que tange a sua evolução interna: os profanos, os iniciandos e os iniciados. Sendo que os do segundo grupo se acham entre os do primeiro e do último, resolvemos chamar-lhes “iniciandos”, quer dizer, seres em vias de iniciação, ou iniciáveis. Não quer isto dizer que, de fato, venham a ser iniciados, uma vez que, em qualquer ponto intermediário da longa jornada entre a completa profanidade e a definitiva iniciação, existe a possibilidade do regresso, da apostasia, da decaída.

De acordo com esses três estágios evolutivos, distinguem-se entre os homens três tipos de caráter, que resolvemos qualificar simbolicamente como homens 1) de caráter-argila, 2) de caráter-cristal 3) e de caráter- aço.

1 – Caracteres-argila

Que forma tem a argila? o barro mole? Nenhuma. É essencialmente amorfa, mas suscetível de qualquer forma que se lhe queira imprimir. Sendo que a argila não possui, em virtude da sua natureza, forma alguma própria, intrínseca, aceita toda e qualquer forma alheia, extrínseca – perdendo-a também com a mesma facilidade.

O homem profano é exatamente como a argila amorfa e formável. Não tem forma específica, não possui caráter certo, mas é amoldável a todas as ambiências. O homem profano não possui centro próprio, e, por isto mesmo, não pode guardar fidelidade a si mesmo, porque não possui um “Eu central” que lhe possa servir de eixo, foco ou, centro de gravitação. Falta-lhe aquilo que se chama “personalidade”. Ele não é propriamente uma pessoa, é apenas um indivíduo. É, a bem dizer, um “ninguém”, e é por isto mesmo que pode vir a ser tudo. O homem de caráter-argila vive em permanente adultério ou divórcio consigo mesmo – ou melhor, é vítima de uma constante e ilimitada “prostituição espiritual”. Qualquer aragem de opinião pública dá com ele em terra. Abandona hoje o que ontem abraçou, e vai apostatar amanhã daquilo que hoje adora. Anda sempre disperso e derramado pelo mundo inteiro, mas nunca está “em casa” concentrado dentro do próprio Eu – também, como podia esse homem estar com seu Eu, se esse Eu não existe propriamente? O homem profano não é, de fato, uma pessoa, mas antes uma coisa, ou até muitas coisas ligeiramente conexas. Pratica um esporte sui generis: aplaude de manhã as idéias de um orador ou escritor, para trocá-Ias ao meio-dia por uma ideologia oposta, a qual à noite vai ser sacrificada por uma mensagem diferente. Como as primitivas amebas, sabe ele assumir todas as formas imagináveis. Como o interessante camaleão, absorve rapidamente as cores do ambiente. O homemargila é antes um processo transitório do que uma substância permanente.

Esse homem é a mais infeliz das criaturas, objetivamente considerado, e tanto mais infeliz quanto mais ele ignora essa sua enorme infelicidade, porque é incapaz de enxergar o abismo da sua miséria. Não é ainda um ser humano especificamente definido, é antes matéria-prima para algum homem possível, espécie de embrião ou feto em vias de evolução, recebendo todos os elementos plásticos do seio materno através do cordão umbilical. É vivido pelo organismo da mãe, não vive propriamente vida individual.

O mundo de hoje está repleto de homens “nascituros” desse gênero, homens sem personalidade própria, sem a menor independência de espírito, homens que pensam pela cabeça dos outros, pelas colunas dos jornais, pelas ondas do rádio, pelos boatos das esquinas, pelo estado fortuito dos seus nervos, pelas secreções endócrinas de certas glândulas, pelo conteúdo momentâneo do estômago, pelas oscilações do termômetro e do barômetro, etc. E, mesmo que pensem por vezes, muito antes de começarem a pensar, já sabem perfeitamente o que deve ser pensado naquelas 24 horas...

Esses homens pertencem, propriamente, como dizíamos, à classe dos moluscos, ou moluscóides ou – outros invertebrados primitivos...

2 – Caracteres-cristal

Horrorizado do amorfismo dos homens-argila, procuram outros criar dentro de si um caráter rigorosamente definido, acabando por cristalizar o seu Eu numa forma estritamente determinada, com faces e arestas precisas e inconfundíveis. São, de fato, como cristais, cujas facetas e arestas não podem ser modificadas sem quebrar o cristal todo.

Esses homens têm “personalidade”, possuem um “Eu” certo, giram em torno dum eixo nitidamente conhecido, e não se desviam, em hipótese alguma, dessa trajetória de precisão matemática. Ao invés dos homens-argila, que só conhecem fins, esses homens-cristal têm princípios, normas certas e definidas, e são capazes de sacrificar todos os fins do plano horizontal da vida pela inexorável verticalidade dos seus princípios morais. A sua vida decorre como que sobre um fio de navalha, retilínea, austera, sem compromissos, nem vacilações para a direita ou para a esquerda. Nada sabem das manobras curvilíneas dos penumbristas e moluscos furtacores, dos mercadores de consciência e dos traficantes de caráter. A vida desses homens de retilínea austeridade pode parecer amarga e triste aos de fora, e, de fato, ela nada tem de comum com o dia risonho e ensolarado de milhares de outros; assemelhase antes a uma noite, uma noite estrelada cheia de trevas, é verdade, mas também repleta de magia e de encantos ignorados pelos cultores da vida fácil. Para o verdadeiro homem-cristal, os longínquos mistérios dos astros da meianoite têm maior fascínio do que, para o homem comum, as coisas propínquas do meio-dia.

Entre os santos, os profetas, os místicos, os grandes gênios da filosofia e da religião, tem havido muitos desses homens, e, se houve progresso real na humanidade, é devido, sobretudo, a esses homens-elite, porque só eles possuem a necessária voltagem para arrancar o homem-massa da sua inércia rotineira e do seu conformismo inoperante, lançando-o para dentro do campo magnético de uma vida dinâmica capaz de transformar a face da terra.

Esses homens, porém, são, por via de regra, vítimas da sua própria missão, devido, não só à incompreensão e descompreensão das massas, como também, e antes de tudo, ao próprio caráter da sua grande missão. São vítimas da sua própria espiritualidade, porque o seu Eu individual, o seu pequeno Ego humano, é a tal ponto absorvido pelo grande Tu divino, que deles se serve de instrumentos e canais, que já não podem gozar como o homem comum as coisas boas e belas da vida cotidiana. Vivem à margem da vida. Trilham veredas à parte, sendas solitárias, não frequentadas pelos ruidosos turistas da vida comum... Não conhecem as estradas gerais da turbamulta... São surdos ao ruído profano dos prazeres... Não se interessam pelo carnavalesco jazz-band de seus companheiros de outrora... A vida desses homens-cristal está repleta do silêncio da Divindade, da vasta solidão do Eterno, da luz estelar do Infinito, do sonoro Saara da oração, das longínquas vias-lácteas duma beatitude inefável de que os profanos nada suspeitam...

De maneira que a vida do homem-cristal, embora pareça tenebrosa e triste, é, na realidade, uma vida profundamente bela e feliz, ainda que a sua beleza e felicidade sejam de uma natureza completamente diferente daquilo que o analfabeto da espiritualidade entende com estas palavras. Nem há possibilidade de dar ao profano uma idéia dessa silenciosa beatitude do iniciando, ou semi-iniciado, como impossível seria explicar a um cego de nascença o que seja luz ou a um surdo o que seja música. O certo é que nenhum desses austeros peregrinos da renúncia estaria disposto a trocar a sua “bela tristeza” pela “horrorosa alegria” dos gozadores superficiais...

3 – Caracteres-aço

Depois da descrição que fizemos do homem-cristal, nada parece sobrar para uma terceira classe de caracteres. E, no entanto, essa classe existe, embora sejam relativamente poucos os homens que a ela pertencem, no presente estágio da nossa evolução. No futuro, porém, é certo, maior número de homens fará parte desses caracteres.

O maior dentre os filhos dos homens, aquele que gostava de se apelidar a si mesmo o “filho do homem” – ou seja, a Flor da Humanidade – não era da primeira nem da segunda classe acima descritas. O caráter dele era como que de aço de lei, duríssimo e ao mesmo tempo flexível como uma mola. O homem-argila, embora plasmável, não possui dureza e fidelidade a si mesmo. O homem-cristal, duríssimo, é destituído de flexibilidade e adaptabilidade, vivendo em permanente guerra com a sociedade. O homem-aço possui do cristal a dureza e da argila a plasticidade. Guia-se pela retilínea inexorabilidade das normas eternas, mas sabe adicionar a essa dura intransigência a sutil adaptabilidade ao ambiente humano. Nunca e em hipótese alguma, esse homem sacrifica os seus princípios para alcançar algum fim; não pactua jamais com o contrário, não aceita compromissos covardes, ignora ambíguas venalidades e penumbrismos oportunistas, guia-se indeclinavelmente por um código de moral absoluto e imutável – em tudo isto é ele irmão do homemcristal – mas, como dizíamos, o homem de caráter-aço possui a soberana faculdade de se adaptar externamente a todas as conveniências e ambiências sociais do momento. Ele, sem ser infiel a si mesmo, sabe ser tudo para todos, ignorante com os ignorantes, sábio com os sábios, criança com as crianças, sabe chorar com os tristes e rir com os alegres. Não é um estóico insensível às alegrias e aos sofrimentos da humanidade em derredor; não recusa sentar-se à mesa do banquete com “publicanos e pecadores”, nem desdenha aceitar as ardentes homenagens de uma “pecadora pública possessa de sete demônios” que venha banhar-lhe os pés com as lágrimas dos seus olhos, enxugá-los com a seda macia da sua cabeleira, cobri-los de beijos e ungi-los com perfumosas essências – tudo isto pode o homem-aço permitir serenamente, sem prostituir o divino santuário de sua alma, sem se divorciar dos seus ideais eternos, sem, cometer adultério contra si mesmo; porque o caráter desse homem é como um raio solar que penetra nas mais imundas sentinas sem levar daí o mais ligeiro laivo de impureza ou contaminação; por menos que os fariseus da frígida legalidade valham compreender tão estranho procedimento.

Ser tudo para todos, sem apostatar de Deus e do seu próprio Eu espiritual, é tão imensamente difícil e supõe tão completa maturidade do espírito, que a maior parte dos homens sinceros faz bem em salvar os seus princípios eternos mesmo sob pena de entrar em conflito com todos e viver à margem da sociedade. É tarefa sobre-humana ser um santo e querer, ao mesmo tempo, ser um elegante cavalheiro de salão a divertir uma turbamulta de profanos e dizer brilhantes vacuidades por espaço de horas a fio, como a sociedade mundana espera de seus filhos e escravos...

Entretanto, é necessário que o iniciado não procure acintosamente fazer da sua espiritualidade um tabu, uma torre de marfim em que se isole hermeticamente contra o mundo profano; é necessário que o homem espiritual, único elemento de que o mundo pode esperar redenção, não fuja do mundo e se acastele por detrás das muralhas maciças de uma clausura impenetrável. Pode a espiritualidade degenerar no pior e mais requintado dos egoísmos humanos, como acontece todas as vezes que o homem faz de si uma exceção da regra, um não-me-toque, uma intangível sacralidade, cercando-se, talvez inconscientemente, de uma atmosfera polar de secreto menosprezo de tudo e de todos que não pertençam à sua elite. É indizivelmente difícil não contaminarmos de sutil orgulho a nossa espiritualidade. A mais difícil, como também a mais bela de todas as coisas belas é uma espiritualidade espontaneamente humilde e sinceramente natural.

O que a humanidade de hoje necessita mais do que tudo é de santos da rua, santos da praça pública, santos dos escritórios, das fábricas, da política – homens que se guiem por um código absoluto de honestidade, homens que possuam a visão clara do Eterno, a experiência do Infinito, a permanente comunhão com Deus, e ao mesmo tempo vivam a vida normal do homem comum, interessando-se vivamente por tudo que pertença à vida humana normalmente vivida.

São esses homens os verdadeiros arautos do reino de Deus, os únicos de que a humanidade de amanhã pode esperar dias melhores e mais felizes.

São eles, esses místicos dinâmicos, os iniciados perfeitos e integrais. 

(Huberto Rohden - Livro : Profanos e Iniciados)


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