Tem-se dito que o fim supremo do homem é a sua
felicidade. É inadequada essa expressão.
Porquanto, também o profano, o homem não-espiritual, é “feliz”, isto é, enquanto ele é capaz de
ser feliz. Muitos dos profanos que tenho interrogado a respeito asseveraram-me
que eram “felizes”.
Entretanto, nem qualquer espécie de felicidade é o
verdadeiro fim do homem.
Porque
há uma felicidade relativa, minúscula,
precária – e há uma FELICIDADE ABSOLUTA, maiúscula, sólida.
Qualquer felicidade que não seja absoluta
contém sempre um
germe do contrário,
quer dizer, um germe
de infelicidade. Pode alguém ser atualmente feliz e ao mesmo tempo potencialmente infeliz, porque a sua
chamada “felicidade” assenta alicerces numa ignorância, total ou parcial, da Realidade Absoluta. Esse homem não atingiu ainda a última fronteira,
não derrotou ainda o último inimigo, e por isto sempre são possíveis surpresas ingratas e imprevistas que lhe destruam a “felicidade” precária
e instável que possui ou julgava possuir. A ignorância da Suprema e Última Realidade é sempre uma porta aberta para a infelicidade, pois, no dia e na
hora em que o ignorante perder a sua ignorância – lá se foi a sua linda bolha de sabão a que ele
chamava sua “felicidade”. É perigoso edificar a felicidade sobre a
tenuíssima e fragílima camada duma bolha de sabão, por
mais lindas que sejam as suas cores.
Posses materiais, fama, saúde – três
lindas bolhas de
sabão sobre as quais milhões de homens erguem o edifício
da sua “felicidade”. Coisa precária! coisa incerta! Amanhã vem um terremoto – e
lá se vai tudo em ruínas!
A maior felicidade desse gênero é, certamente, a
saúde, porque sem ela todas as
demais felicidades terrestres pouco valem. Mas quem me garante que amanhã
um bando de bactérias não virá destruir o edifício da minha saúde e felicidade?...
Quer dizer que
essa tal felicidade depende das boas ou más graças de uns micróbios!... Sou feliz por obra e mercê de um bando de streptococcus ou de
uns invisíveis vírus... Se essas criaturinhas houverem por bem não me fazer
infeliz, sou feliz; se resolverem o contrário, sou infeliz...
É
necessário que a
nossa felicidade esteja
baseada em algo que,
em caso algum, possa ser
destruído por fatores alheios à vontade do homem.
Mas que é esse “algo”?
É a sapiência, o conhecimento intuitivo
de Deus, que, naturalmente, implica o amor de Deus e de tudo que é de Deus.
Há um caminho ascensional do não-saber
ao saber – mas não
há caminho descensional do saber ao
não-saber.
Da minha ignorância negativa de ontem
passei para a sapiência positiva de hoje – mas desta não posso voltar
para aquela. Posso chegar a saber o que ignorava – mas não posso tornar a
ignorar o que sei. De infeliz posso vir a ser feliz –
mas da felicidade perfeita não há
regresso para a infelicidade. A felicidade, porém, nunca consiste em ignorância, ilusão, irrealismo. A verdadeira felicidade supõe verdade, sapiência, realidade. A verdade
absoluta é infinitamente mais bela que todas as pseudo-belezas das ilusões ou semiverdades. Enquanto alguém
não tiver os pés solidamente firmados no alicerce eterno da Realidade Absoluta, Deus, não tem garantia real de que amanhã ainda continue a ser
feliz. Enquanto a minha felicidade dependa de algo que não dependa de mim, não
sou solidamente feliz. Se os azares da fortuna, se a malevolência do meu vizinho, se um determinado micróbio no meu sangue, se um certo humor nos meus
fluidos orgânicos ou certa vibração nos meus nervos forem os árbitros e fatores decisivos da minha felicidade ou infelicidade, evidentemente não sou feliz, porque não sou eu o autor e dono desses estados; estou entregue à mercê de fatores que não obedecem à minha vontade.
A felicidade deve necessariamente consistir em algo
que esteja realmente em meu poder – e isto é o conhecimento e amor de Deus.
Uma vez atingida essa excelsa culminância, essa
extrema fronteira, sinto-me imperturbavelmente feliz, na certeza absoluta de
que ninguém, no céu, na terra ou no inferno, é capaz de destruir a minha
felicidade.
Ninguém? Existe, sim, um único ser capaz de a
destruir – e este ser sou eu mesmo. Só eu, e mais ninguém. Mas, se eu não
quero ser infeliz, ninguém me pode fazer infeliz. E eu posso não
querer.
O homem espiritual, o místico, o iniciado é o único
homem imperturbavelmente feliz.
(Huberto
Rohden - Livro : Profanos e Iniciados)